A busca pela efetividade no uso do orçamento público já um tema fortemente discutido desde os anos 1970, com a emergência da New Public Mangement, e ganhou força com o chamado Primeiro Consenso de Washington, mais preocupado com a qualidade institucional do Estado, sendo o “Segundo Consenso” priorizando a austeridade fiscal e jurídica que protagonizou os mantras da administração pública daí em diante, sobretudo ao longo dos anos 1990. As respectivas agências de auditoria externa pública, nossos Tribunais de Contas (TC’s), também estiveram imersos na conformidade das ações de nossos atores políticos com a lei, sobretudo a LC 101, de 04/05/2000 e as regras de licitação. Porém, se pensarmos que a necessária confiança no sistema democrático está igualmente ligada aos resultados práticos da gestão, aos ganhos concretos e à satisfação das expectativas, fica claro que a mera conformidade com a lei não satisfaz os objetivos estabelecidos pela Constituição de 1988, muito menos o desejo e a colaboração das redes formadas pelos cidadãos para a sustentação das liberdade substantivas, nos termos de Amartya Sen, através dos quais pavimenta-se o aprimoramento da qualidade da democracia. 

Neste sentido, este texto traz alguns apontamentos sobre como elementos da governança para a efetividade da execução do orçamento público tiveram mudança de tratamento por parte dos TC’s, e como esta mudança pode contribuir para o fortalecimento de nossa Democracia, algo muito nítido na Carta de Foz do Iguaçu, elaborada em virtude do I Congresso Internacional dos Tribunais de Contas (I CITC), em 2019. Trazer esta “Carta” à tona vem bem a calhar, pois indica 4 diretrizes a orientarem os trabalhos destas agências de auditoria nos anos que se seguem, e na próxima semana, dia 28 de novembro, começa o III CITC, onde estas questões devem ter continuidade, como na discussão sobre o novo modelo do Índice de Efetividade da Gestão Municipal, aplicado pelos Tribunais.

Segundo trabalho liderado por Ricardo Paes de Barros para parceria entre o INSPER  e o Instituto Airton Senna (Paes de Barros et al, 2016), além de ter como referência os objetivos e as crenças daqueles que representa, as decisões do gestor público precisam encontrar uma relação entre as evidências disponíveis e as desejadas, pois predominantemente tem à mãos dados que não respondem precisamente aos que deseja para fazer uma prospecção dos resultados esperados. Isto leva a dois problemas evidentes: i) não se atingir os objetivos, frustrando a população e ameaçando sua legitimidade (e do sistema que lhe investiu poder) e; ii) correr o risco de que seus adversários consigam equalizar melhor a informação, proporem soluções mais consistentes e ganharem mais credibilidade (este segundo ponto é mais um apontamento meu, em confluência com idéias do texto de Paes de Barros). 

Este problema da informação tornou-se muito evidente com a emergência da chamada Economia 4.0, e mais ainda com as emergências explicitadas pela pandemia de Covid 19, como muito bem aponta o autor, num trabalho em coautoria com Laura Muller Machado (2021, Cap 13). Segundo eles, apesar de a soma de todos os recursos públicos gastos com a área social ultrapassarem 25 % do PIB, existem evidentes problemas de efetividade nestes gastos, e isso decorre por deficiência na equalização de 3 questões primordiais: i) identificação dos mais vulneráveis, ii) mapeamento do que mais precisam e iii) disponibilidade de canais mais eficazes. A pandemia teria mostrado a dificuldade em superar barreiras de invisibilidade da vulnerabilidade, mas principalmente a ineficiência do aparato institucional capaz de identificar o que estas populações precisam e de canais eficazes para o seu atendimento. Como os mesmos autores afirmam na abertura da sessão onde o citado artigo se encontra (Sessão 3), trata-se de um problema de governança, no que se refere à estrutura de Estado necessária para sanar problemas focalizados quanto na transparência de como estes investimentos acontecem (problema de accountability) – problemas de dados sobre a realidade capazes de orientar políticas baseadas em evidências (evidências de resultados e de conformidade com a lei).

A Carta de Foz do Iguaçu do I CITC (2019) explicita uma mudança de paradigma no trabalho de auditoria dos Tribunais de Contas que já vinha acontecendo ao longo dos últimos 10 anos: a ampliação da quase exclusiva prioridade na aferição da conformidade com a lei para um leque bem maior de preocupações, ancorados na avaliação dos resultados esperados, na efetividade do gasto público. Foi um documento assinado em 14 de novembro de 2019 pela Atricon, IBR, Abracom, Audicon e CNPTC, como resultado das discussões do I Congresso Internacional dos Tribunais de Contas (CITC), que englobou o XXX Congresso dos Tribunais de Contas do Brasil, entre os dias 11 e 14 de novembro. Está em consonância com a Declaração de Moscou, assinada no XXIII Congresso da INTOSAI, ocorrido entre os dias 25 a 27 de setembro do mesmo ano e organizado pela Organização Internacional das Instituições Superiores de Controle (INTOSAI), órgão não governamental consultivo no  Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC). 

Ela procura atualizar os desafios tecnológicos, econômicos e sociais contemporâneos, que por um lado reforçam a necessidade de responsabilidade fiscal e por outro a evidente urgência de investimento e coordenação do Estado na superação da vulnerabilidade socioeconômica acentuada pelas mudanças tecnológicas, que simultaneamente potencializam novas formas de organização sociopolítica. Sintetiza as seguintes diretrizes de atuação para as auditorias externas públicas para os anos que se seguiram (se seguem):

  1. Aproveitar as oportunidades trazidas pela revolução da informática para aprimorar os seus processos de trabalho e adequá-los às novas demandas sociais;
  2. Contribuir para o aprimoramento permanente da atuação do Estado como promotor de políticas públicas;
  3. Estimular o diálogo interinstitucional, buscar atuação em rede, aproximar-se da sociedade civil e promover um debate qualificado, baseado em evidências, com a premissa de defesa permanente do Estado Democrático de Direito; e
  4. Buscar permanentemente a realização de um trabalho que tenha impacto social, alinhado às diretrizes emitidas pelas entidades representativas do controle externo.

Considerando que a primeira diretriz trata basicamente da coleta e processamento das informações sobre onde está a vulnerabilidade (ponto “i” apontado por Paes de Barros e Machado) e a segunda e quarta abordam a capacitação do Estado para promover políticas públicas de impacto positivo (ponto “iii” apontados no artigo de 2021), capazes de satisfazerem sãs demandas da sociedade, temos a terceira diretrizes apontando um aprimoramento das instituições através das quais o poder público consegue levantar o que os cidadão querem e precisam (finalmente, o desafio “ii”, referente à capilaridade, monitoramento e governança). Trata-se da preocupação com o aperfeiçoamento institucional para que se tenha um radar adequado quanto aos problemas a serem resolvidos, em sintonia e envolvimento com as pessoas.

Tal busca de alternativas institucionais para a participação da população no processo de conquista dos resultados esperados (e atendimento destes) é uma preocupação, por exemplo, presente na agenda de pesquisa de José Álvaro Moises (2013), que identifica esta capacidade das antigas democracias em inventar qualificadamente mecanismos alternativos de atuação da sociedade civil no processo político alternativos ao voto em representantes, tal que a desconfiança nos protocolos da democracia liberal tem o resultado oposto da rejeição em países com democracias frágeis, com a recusa dos cidadãos em participar politicamente da Esfera Pública. Pode-se dizer que dos 5 critérios multidimensionais de avaliação da qualidade da democracia expostos por Moisés 10 anos atrás, i) identidade com sua comunidade política, ii) crença na democracia como um ideal, iii) desempenho específico do regime, iv) confiança nas instituições voltadas ao funcionamento da democracia e v) confiança nos líderes políticos, pode-se dizer que o critério “iv” do professor da USP corresponde ao “3” da “Carta”.

Este debate em torno das novas diretrizes dos Tribunais de Contas, também agora voltados para a efetividade da administração pública, muito alinhada com as urgências indicadas por Paes de Barros e Machado, e em sintonia com os resultados e com a confiança na democracia tal qual foi desenvolvida por Moisés, proporciona muito a ser desenvolvido e aprofundado. Como foi dito no início do deste texto, apresento aqui apenas alguns elementos iniciais, que devem ser detalhados futuramente. É fundamental acompanhar o que se será tratado no III CITC a respeito de efetividade das políticas e participação dos cidadãos na elaboração, execução e acesso à informação sobre os resultados, e acredito que aqui contou-se com referências a partir das quais o prosseguimento destas mudanças no trabalho dos Tribunais de Contas pode ser avaliado.

Referências

I Congresso Internacional dos Tribunais de Contas – I CITC (2019). Carta de Foz do Iguaçu. Disponível em: https://www.atricon.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Carta-de-Foz-do-Igua%C3%A7u-I-CITC.pdf

MOISÉS, J.A. (2013). Cidadania, confiança política e instituições democráticas. In: Moisés, José Álvaro, Rachel Meneguello, and I. I. Q. U. E. Parte. “A Desconfiança Política e seus Impactos na Qualidade da Democracia–o caso do Brasil.” SãoPaulo: EdUSP (2013).

PAES DE BARROS, R; SANTOS, D.D.; COUTINHO, D; SOARES, C.M.M. (2016). São Paulo: Instituto Ayrton Senna e Insper.

PAES DE BARROS, R.; MACHADO, L.M. (2021) Legado para a organização do Estado (Introdução Sessão 3). Legado de uma pandemia: 26 vozes conversam sobre os aprendizados para política

publica / Organizadora Laura Muller Machado. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2021

PAES DE BARROS, R.; MACHADO, L.M. (2021). A pandemia e o início do fim da invisibilidade. Legado de uma pandemia: 26 vozes conversam sobre os aprendizados para politica

publica / Organizadora Laura Muller Machado. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2021