Passado um ano da posse do atual governo federal, cabem vários balanços sobre seus objetivos e o cenário com o qual terá que conviver. Dentre as várias instâncias com as quais o poder executivo precisa estabelecer interlocução, negociar e conciliar propósitos, novas realidades e antigos desafios, pode-se dizer que a relação com o congresso foi, é e sempre estará na pauta do dia, dentro do funcionamento pleno do Estado Democrático de Direito. Se por um lado, a diversidade de posicionamentos possíveis em um parlamento é a garantia da representatividade à qual institucionalmente ele se propõe, por outro tende a apresentar uma heterogeneidade que muitas vezes escapa ao esforço pela previsibilidade e, muitas vezes, coerência: se espera-se que seja representativo, tem que refletir as desigualdades e contradições da própria sociedade, difusa em termos setoriais e regionais. 

Muitos parlamentares são mais conectados às demandas pontuais de seus representados do que a grandes questões nacionais, ideológicas, constitucionais. Uma parcela significativa dos eleitores fazem suas escolhas demandando pontes, escolas, creches, postos de saúde, pavimentações, saneamento básico, todas demandas locais, muitas vezes desarticuladas dos grandes projetos integrados. Esperam e cobram resultados práticos muito palpáveis, o que os leva a votarem por promessas locais, em detrimento de questões universais, colocando nos assentos de deputados federais lideranças sem alinhamento ideológico claro, que precisam recorrer às estratégias que tem à mão para atingir as expectativas. É inegável o preconceito contra este tipo de lideranças, que sempre precisa criar canais com quem está no executivo para conseguir o que precisa para representar os votos, compondo o que pejorativamente convencionou-se a chamar de “Centrão”, conotação que pretende-se aqui contrapor.

Dado que via de regra trabalhos de pesquisa sobre legislativo federal frequentemente orientam-se pelo objetivo de fortalecimento da qualidade democrática para a construção de projetos nacionais, muitas vezes na busca da efetivação de projetos do executivo, reforçando a falta de legitimidade dos parlamentos – isso também se reproduz em boa parte do eleitorado, muitas vezes esquecida de quem votou para cargos proporcionais – o estigma de “Centrão” também aparece como um problema da política brasileira, atraso. Uma pesquisa desenvolvida no Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia – LEPEM do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará chamou atenção por despir-se destes rótulos ao abordar o tema, e um artigo deste laboratório publicado pelas pesquisadoras Gabriella Bezerra e Márcia Vieira (2022) mostrou-se bastante esclarecedor para orientar a desmistificação.

Baseado no referido trabalho, o primeiro objetivo será questionar a pretensa crítica de que as lideranças ideologicamente não alinhadas são absolutamente dispersas e individualistas, com pouca tendência à fidelidade partidária. Em seguida, serão apresentados alguns elementos sobre a origem do conceito, o que querem e como querem, e como já foi dito, muitas vezes recorrem a artifícios regimentais nem sempre afeitos às aspirações mais ideais dos princípios e processos democráticos. A partir destes esclarecimentos acerca do funcionamento destas lideranças em seus partidos, de seus objetivos e “modus operandi”, será lançada uma nova concepção sobre “as lideranças ideologicamente não alinhadas”, transformações recentes substanciais de como atingem um público não mais apenas localmente através dos meios digitais, e fechando com algumas sugestões sobre formas saudáveis de relação entre o executivo e este perfil de agente público.

Um primeiro preconceito que precisa ser superado para a construção de uma melhor relação com tal perfil específico de liderança é em relação à sua tendência à infidelidade partidária. Para isso, Bezerra e Vieira apresentam uma tabela com os coeficientes de coesão partidária dos 5 maiores partidos apresentados como “Centrão” por boa parte dos analistas políticos, indicador que avalia se os parlamentares atuam de forma homogênea em votações nominais (todos os deputados votam, não são decisões de lideranças de bancada):

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Entre 2021 e 2022 este indicador de fidelidade partidária esteve na média entre 0,57 e 0,52 em toda a câmara, uma primeira conclusão que se pode chegar é que nestes 5 partidos a fidelidade partidária é muito maior do que a média do restante do parlamento. Isto significa que existem mecanismos internos nestas instituições que viabilizam a articulação de consensos, em torno do que suas lideranças almejam, o que torna refutável a afirmação de que são dispersos e absolutamente individualistas. Independente de estes posicionamentos alinharem-se a posições de governo ou oposição, entre si eles são alinhados, compreensão fundamental tanto para quem pretende analisar consistentemente o processo político quanto para os responsáveis por aprovar/aprimorar pautas do poder executivo.

Aliás, caracterizar o comportamento do legislativo como meros apoiadores ou opositores de iniciativas do executivo recai sobre desconsiderar que o legislativo possa ter uma agenda própria, representando diretamente o eleitor; quando se divide entre governo e oposição, um parlamentar é reduzido apenas à “player” de candidatos à presidência, e não representantes legítimos de diversos nichos regionais e setoriais que trazem demandas diretamente para seus gabinetes. As autoras sustentam que a formação de coalizões de interesse difusos acontece quando uma maioria impede a viabilização destas demandas, tanto através do uso de recursos como Destaque para Votação em Separado (DVS) como alinhamentos estratégicos para negociação de uma variedade de pautas individuais. Mas que pautas individuais orientam os “ideologicamente não alinhados”?

Convencionou-se que o “Centrão” surgiu durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1988, quando atores desprestigiados pelos seus partidos ou agrupamentos passaram a recorrer a mecanismos estratégicos e institucionais que fugiam à conquista de maioria. Eles surgiram de movimentos de centro-direita, e ao longo dos anos o termo passou a ser associado tanto a grupos afeitos à negociações de caráter duvidoso e pouco aderentes aos interesses da sociedade (interesses muito particulares) quanto a uma resistência centro-conservadora para neutralizar maiores sectarismos da esquerda, que à época da Constituinte muitas vezes não aceitavam o jogo democrático aberto, o que as evidências levam a crer ter sido superado. Esta adaptação da maioria da esquerda ao jogo institucional evidenciou-se nos governo do PT, que progressivamente passou a ter maior facilidade de diálogo e compreensão mais precisa com as lideranças de centro-direitas referidas aqui. Mas e o impeachment da Dilma?

Na medida em que aconteceu uma crise econômica, minguaram os recursos públicos para realização das demandas de suas bases eleitorais e tornou-se cada vez mais difícil apoiar um governo que passou a representar falta de dinheiro no bolso: seu eleitor médio tem memória curta, está preocupado com o próprio bolso e as “lideranças não alinhadas” são mais reféns das instabilidades da opinião pública do que políticos orgânicos em seus partidos, que conseguem contornar crises mantendo coerência em discursos e em projetos de país. Reforçando o que foi afirmado no início do texto, a fidelidade partidária deste tipo de liderança está intimamente vinculada à capacidade de seu partido sintonizar o desejo de seu eleitorado, não de seu governo. A conduta destas lideranças e dos partidos que as agregam é explicável ao se compreender esta relação e aceitar-se que seu objetivo imperial é corresponder às expectativas e garantir “outputs” políticos satisfazendo seus apoiadores; como em todo país democrático, embasado na “real politik”, o interesse fundamental é o fortalecimento político, para garantir resultados à sociedade (ou seus apoiadores) ou mesmo – nos piores casos – para si próprio, e em alguma medida esta é a lógica de qualquer mandato.

Recentemente o fenômeno da comunicação digital subverteu bastante tal processo, na medida em que as relações sociais descompromissadas com linha ideológica ganharam dimensão nacional (e internacional). O processo de interação, onde se formam as opiniões que não seguem linhas massificadas, passou de uma abrangência local para setorial, atingindo identidades espalhadas por todo o mapa. Este fenômeno, não aprofundado por Bezerra e Vieira, reconfigurou o que o “Centrão” quer, com o surgimento de deputados eleitos através de campanhas na internet imersas em pautas de costumes e sem vínculos regionais, o que dificulta a negociação com estes setores para a adequação de gastos e cargos que decidem para onde vão determinadas obras públicas de pequeno e médio porte (geralmente estas canetas estão no segundo e,  principalmente, no terceiro escalão dos ministérios). Pior, esta nova característica acentua o clima de polarização na sociedade numa dimensão provavelmente nunca vista. Resgatar projetos de reorganização de políticas públicas, aprimorando sistemas policêntricos de governança que vão da dimensão municipal/microrregional, passando por estados, macrorregiões até a União pode ser uma boa solução para reterritorializar a dinâmica parlamentar, uma ferramenta viável para neutralizar o embate nacional do “nós contra eles”.

Tomados como agrupamentos difusos, operacionais e despreocupados com questões nacionais, facilmente nos levaria a conclusão de que as aqui chamadas “lideranças ideologicamente não alinhadas” atrasam a qualificação de nossa democracia, e na medida em que seus principais partidos apresentam uma coesão inesperada entre os formadores de opinião (e muitos pesquisadores acadêmicos), considerá-los assim pode, sim, ser um motivo da dificuldade no aprimoramento da prática democrática. Mais que isso, adequar a articulação política dos portadores dos grandes projetos a esta realidade pode ser o tão necessário antídoto contra a intolerância que assola o país. Não podemos nos enganar, vivemos em uma sociedade cindida, que precisa ser costurada, e nesse sentido podemos aprender muito com quem não se alinha automática, indiscutível e inseparavelmente; fidelidade, apenas com seus representados.

 

Referência:

Bezerra, G. M. L., & Vieira, M. P. (2022). Interpretações e poderes em disputa: o ressurgimento do Centrão na política brasileira. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais10(1), 36-59. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/8775352.pdf