Leio na primeira página do Estadão (03/01//2024), sob o título “Ecos da Guerra”, a manchetinha: “Reitora de Harvard renuncia em meio a onda antissemita”. Um aumento de sinais de antissemitismo já havia sido noticiado em outros jornais, sobretudo da Europa, em países que têm número expressivo de residentes de origem muçulmana. E algum “amigo de Facebook” publicou um cartaz em grandes letras: “E a reitora antissemita e plagiária?” Antissemitismo e genocídio são termos lançados a todos os ventos nesses novos tempos de guerra.

Mas será que foi antissemitismo o que levou a professora de ciência política, Claudine Gay, a durar apenas seis meses no cargo de Reitora da Universidade mais renomada do mundo? Vimos em meados de dezembro fotos das manifestações estudantis em Harvard. Até coloquei na minha página no Facebook uma das fotos em que um jovem estudante levantava um cartaz: You will not ‘antisemite’ me into complacency with genocide. (Não é me chamando de antissemita que me tornarão complacente com genocídio). Outro cartaz visível: “Bombing children is not self defence it is genocide.” (Bombardear crianças não é autodefesa, é genocídio) A foto ilustrava no “The New Yorker” (17/12/2023) uma entrevista em que a Reitora da Universidade de Berkeley, Carol Christ, ponderava o quanto é difícil, no atual contexto, ser Reitor e equilibrar a segurança dos estudantes com a liberdade de expressão.

 “Cartazes simplistas de realidade tão complexa”, comentou uma amiga. Sim, radicais e unilaterais. Também simplista é pensar que a campanha orquestrada contra a Reitora Claudine Gay era sobre antissemitismo. A chamada “guerra cultural” é mais abrangente e virulenta nos Estados Unidos do que a gente consegue imaginar aqui. Também nessa guerra a primeira vítima é a verdade, frase que virou chavão a insinuar que a verdade “depende de lado”. Já se esqueceu que uma vez, em 1971, Hanna Arendt escreveu que “não se consegue remover do mundo um fato simplesmente fazendo com que um número suficiente de pessoas acredite que ele não existe”. (“Lying in Politics”, NYRB, 18 de novembro de 1971) Era a propósito de outras guerras.

Em tese, deveria ser possível debater com fatos se aumentou o antissemitismo nos Estados Unidos, mostrar o que está sendo considerado antissemitismo, e avaliar se existe nos Estados Unidos o risco de violência generalizada contra judeus no campus universitário. Manifestações estudantis de dezembro que aludiam às mortes de civis palestinos foram o gatilho para a movimentação de mais de 70 membros do Congresso americano questionando a gestão dos Reitores de universidades importantes que não impediram tais manifestações, e que teriam tolerado agressões e ameaças a estudantes, funcionários e professores judeus no campus. Vários Reitores foram acusados de minimizar o antissemitismo. O caso de Harvard foi apenas o que provocou mais perguntas e maior repercussão. 

Também professor de Harvard, ex-presidente da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), também negro e também da área de ciência política, Cornell William Brooks comentou a renúncia da colega: como foi que uma preocupação legítima sobre antissemitismo no campus desembocou em debate sobre a ação afirmativa e plágio? A resposta depende de um exame das várias etapas da cruzada contra a Reitora. 

Claudine Gay foi aprovada para o cargo em dezembro de 2022 e empossada em julho de 2023, como 30º Presidente da Universidade de Harvard. Um ano passou sem que viesse à tona algum questionamento sobre uma carreira acadêmica respeitada por seus pares, focada em estudos africanos e afro-americanos. Além de que ela era, desde 2018, Reitora da Faculdade de Artes e Ciências de Harvard. Não foi a primeira mulher a ser Reitora da Universidade, que o feito pertence à historiadora Drew Gilpin Faust, mas foi a primeira pessoa negra a chegar ao cargo. E foi a que nele permaneceu menos tempo, pois em 2 de janeiro de 2024 entregou sua renúncia.

A sua derrocada começou em 5 de dezembro de 2023 na audiência do Congresso americano, quando foi pela primeira vez convidada a depor e se saiu muito mal. No rastilho das manifestações estudantis, congressistas arregimentados pela republicana Elise Stefanik, notável ativista na campanha de Trump, aprovaram a convocação de reitores para uma audiência na Comissão de Educação (US House Committee on Education & the Workforce).

Curiosamente, foi uma ação entre mulheres. Por acaso? Mulher a chefe da Comissão que coordenou a audiência, a republicana Virginia Fox. Mulher também quem conduziu o interrogatório televisionado e gravado, que aumentou sua visibilidade, Elise Stefanik. Só foram chamadas reitoras mulheres. Depuseram Liz Magill (Universidade da Pennsylvania), Sally Kornbluth (MIT), e Claudine Gay (Harvard). Também foi convidada Minouche Shafik, Reitora da Columbia, que não veio por “conflito de agenda”. (Desconfio que a economista que tem um currículo internacional dos mais brilhantes, ex-Reitora da LSE e membro da Câmara dos Lordes, teve a esperteza de evitar a armadilha trumpista.) Mais uma mulher, a assessora que a chefe da Comissão convidou, Pamela S. Nadell, Diretora do Programa de Estudos Judaicos da American University, que entregou um depoimento por escrito sobre o livro que está preparando, “Antissemitism, an American Tradition”.

Cada uma das Reitoras recebeu a pergunta se “pedir o genocídio dos judeus” violava o estatuto de sua Universidade. Nenhuma respondeu apenas sim ou não; podia ser, mas dependia de contexto. Quando a reitora do MIT, Sally Kornbluth, que é da área de ciências naturais e é de origem judaica, afirmou que não tinha ouvido nenhum chamado por genocídio, Stefanik decidiu lhe ensinar que cantar por “Intifada” equivalia a “pedir o genocídio” de judeus. Imediatamente depois da audiência Stefanik pediu a renúncia das três reitoras ouvidas, e em seguida publicou uma carta assinada por 70 congressistas insistindo na renúncia.

A Reitora da Pennsylvania renunciou três dias depois. A do MIT está incólume: recebeu imediatamente o apoio inequívoco da sua Corporação, a governança do MIT.

A Corporação de Harvard declarou apoio unânime à permanência de sua Reitora, depois de demoradas discussões, em 12 de dezembro. No mesmo dia saiu uma declaração de apoio dos cinco Reitores que estiveram no cargo antes dela. A demora foi interpretada como a existência de divisões internas. Logo depois da audiência no Congresso a Reitora pedira desculpas, em um comunicado, dizendo que deveria ter condenado a invasão terrorista do Hamas em 7 de outubro e lamentando ataques racistas pessoais que estava recebendo, e que entendia como sua missão combater o ódio no campus. Tais ataques racistas também foram condenados pela Corporação. Mas a desconfiança já estava espalhada demais.

Mesmo com uma manifestação de 700 professores de Harvard que pediam que a pressão externa fosse rechaçada, a situação da Reitora ficou difícil, pois começaram a se espalhar cada vez mais acusações de que há plágio em seus textos de ciência política.  A Corporação informou que haviam sido investigadas tais acusações e que não havia comprometimento da qualidade acadêmica, mas seriam feitas pequenas revisões. Porém acusações de plágio continuaram, agora agravadas pela expressão de dúvidas sobre se a carreira e os trabalhos de Claudine Gay, devido à ação afirmativa, não teriam sido submetidos a critérios menos rigorosos. Claro que numa universidade que quer ser a melhor do mundo isso incomodaria mais que qualquer outro tipo de crítica, como bem avaliou Christopher Rufus, o estrategista da campanha contra a Reitora.

Não sei se foi relevante na audiência de 5 de dezembro a defesa da liberdade de expressão, pois na mídia o que repercutiu foi a pergunta sobre genocídio. Poucos se interessaram pela invocação à 1ª emenda da Constituição dos Estados Unidos, que trata das liberdades de expressão (liberdade religiosa, liberdade de discurso, liberdade de imprensa, liberdade de reunião pacífica, liberdade de pedir ao governo reparação de queixas). Alguns professores até lembraram a hipocrisia de tal invocação, pois é notório que vem sendo desrespeitada nos últimos anos, quando manifestações de estudantes no campus universitário trataram de impedir ou exigir certos cursos, impedir a entrada de alguns conferencistas no campus, fazer baderna em determinadas palestras.

Polêmica não é novidade em Harvard. Nem mesmo a polêmica relativa a direitos e proteção das minorias. Quando a primeira mulher a ser Reitora de Harvard, Drew Gilpin Faust, tomou posse em 2007, enfatizou que não queria ser “a mulher Reitora de Harvard”, e sim, a “Reitora de Harvard”. Era o começo do “Me too”, mas Faust não cedeu à pressão para que retirasse de um cargo de reitor de uma residência estudantil um professor de direito, Ronald Sullivan, quando este decidiu fazer parte do grupo de advogados de Harvey Weinstein. Faust nunca deixou de ser defensora da “ação afirmativa” e sempre foi uma ativista dos direitos civis. Sullivan foi demitido pelo Reitor seguinte, em 2019.

Curiosamente – e talvez nem tenha sido politicamente um acaso – a primeira Reitora mulher sucedeu o conhecido economista Lawrence Summers, que havia renunciado em meio a uma polêmica tão feroz quanto a atual, mas sobre outro tema. No “caso Larry Summers”, a rejeição veio de dentro de Harvard, comandada pela própria Faculdade de Artes e Ciências, que o acusava de não consultar os docentes. No final serviu de pretexto a reclamação de feministas, ainda que ele nunca tenha dito o que lhe foi atribuído na mídia sobre aptidão científica das mulheres. Numa conferência sobre diversidade, Summers propôs examinar porque eram tão poucas as mulheres cientistas de ponta. Feministas não gostaram que ele não encampasse a tese simplista de que é só discriminação. E assim Summers acabou de certa forma vítima de “wokismo”. Para sua honra, é preciso registrar que tanto Summers quanto Faust estão entre os ex Reitores de Harvard que expressaram seu apoio a Gay.

Para os congressistas e outros membros do Partido Republicano, a pressão contra as Reitoras e a tentativa de desmoralizá-las tinha o objetivo explícito de afastar de postos de poder símbolos da “ação afirmativa” e do que alguns americanos chamam de “burocracia DEI”. A sigla DEI, de Diversidade, Equidade e Inclusão, é resumo para políticas e programas para incorporar pessoas de diferentes idades, raças, etnias, habilidades, gêneros, religiões, culturas e orientação sexual. Em sua versão mais radical e fanática, são as políticas identitárias também identificadas como “wokismo”. “Backlash” é a palavra que deveria ligar o alarma dos democratas.

Quem duvida que o ataque à Universidade é parte importante da campanha eleitoral de 2024, leia a entrevista de um intelectual ativista da campanha de Trump, Christopher Rufus, que reivindica ter sido o criador da estratégia de três frentes que convergiram para a mesma meta: a) a acadêmica, ao fazer chegar até a mídia que ele chama de centro esquerda (CNN, The New York Times, Washington Post) as denúncias de plágio; b) a do financiamento, argumentando com patrocinadores para que suspendessem doações; e c) a política, com a mobilização do Congresso. (https://www.politico.com/news/magazine/2024/01/03/christopher-rufo-claudine-gay-harvard-resignation-00133618)

Ao fim e ao cabo, a governança de Harvard terá que aprender que as habilidades requeridas para enfrentar democraticamente congressistas e ativistas hostis são diferentes daquelas necessárias para administrar o dia a dia de uma grande universidade. Nenhuma das Reitoras lembrou que quando o Presidente Joe Biden expressou ao Primeiro Ministro Netanyahu a preocupação com o grande número de vítimas civis das IDF (“Israeli Defence Forces”) a reação do governo de Israel foi apenas lembrar que o governo americano não reclamou quando civis alemães foram vítimas da RAF (Royal Air Force) na II Guerra Mundial. Isso não equivale a uma insinuação de antissemitismo do Presidente dos Estados Unidos?