Tanto no Oriente quanto no Ocidente, o ódio segue bem nutrido. Polarizações políticas, racismos, fanatismos, aversão à diversidade e ao pluralismo, para ficarmos apenas nesse elenco, robustecem o ódio, e suas carrancas e minam as sociedades democráticas. Uma pobreza de visão pretende eliminar a dúvida, o espírito crítico, o secularismo, a laicidade, a liberdade, substituindo-os por uma visão autoritária, individualista, eivada de mitos e de fantasias de pureza. Com isso, a extrema direita ganha terreno e capilarização. Enfim, os dragões despertaram e suas bocarras e línguas de fogo só exalam ódio, violência e medo. O que fazer?

Em seu ensaio “Contra o ódio”, a premiada jornalista e filósofa alemã Carolin Emcke, após examinar as causas e consequências da propagação do ódio, nos sugere o que fazer para tentarmos viver numa sociedade segura, democrática e plural. Para ela, não basta (como tanto se faz) “[…] apenas condenar o ódio e a violência, mas observar seus modos de funcionamento, o que implica sempre demonstrar que algo ‘diferente’ poderia ter sido feito, que ‘outra’ decisão poderia ter sido tomada, que alguém poderia ter ‘intervido’ […]; observar com quais estratégias retóricas, metáforas ou imagens o ódio é gerado e canalizado […]”. Se não se chega a esse subsolo, de resto nem tanto subterrâneo, muito pouco se terá feito para se deter a robustez do monstro. É trabalho, como frisa a ensaísta, não só para as forças de segurança do Estado, mas para toda a sociedade e cada um de nós. Enfim, é preciso reconhecer o ódio desde o seu início onde ele quer que se encontre: no ambiente social, na família, na vizinhança, nas comunidades on-line…

Na Alemanha, conta-nos a autora, ganhou destaque, nos últimos anos, a expressão “cidadão preocupado”, um termo encobridor para quem pouco a pouco adere ou simpatiza com movimentos e partidos de extrema direita. Em nota de rodapé, o tradutor Maurício Liesen logo nos informa que tal expressão equivaleria no Brasil a “cidadão de bem”, que vem carimbando conservadores e iliberais; um rótulo que, na prática, em face da democracia, tem, no mais das vezes, constituído uma verdadeira ironia. “A preocupação funciona como um sentimento encobridor”. No Brasil, a locução “do bem” ofusca qualquer visão mais racional e legal, tentando blindar um grupo que se quer excludente. O ódio não é direto, mas dissimulado. Os do “bem” aqui e os “preocupados” lá, na Alemanha, tornam-se, ou assim se pretendem, “intocáveis”, como “[…] se qualquer norma limitasse o livre egocentrismo do indivíduo”.

Negros, refugiados, homossexuais, transexuais, islâmicos, enfim todos os “outros”, todos os “estrangeiros” tornaram-se um perigo. Generaliza-se com incrível facilidade. E ainda por cima, os aproveitadores do medo lucram com isso. A essa fome insidiosa do ódio junta-se a dificuldade de se ter empatia. A ensaísta americana Elaine Scarry, citada por Emcke, num texto intitulado “A dificuldade de imaginar outras pessoas”, nos põe de alerta: “É tão fácil ignorar a dor do outro, que somos até capazes de infligir ou ampliar essa dor sem que isso nos comova”. Ou como disse o nosso Machado de Assis, a seu discreto e humorístico modo: “Suportamos com paciência a cólica dos outros”.

Para a ensaísta, devemos, numa profilaxia ao ódio, deter o nosso olhar nos mecanismos de inclusão ou exclusão. Observar “[…] quem pode e quem não pode pertencer, quem é incluído ou quem é excluído, quem é dotado de poder e quem é destituído dele, a quem os direitos humanos são concedidos ou negados […], abrangendo também o universo dos gestos e das leis, os regulamentos administrativos ou com disposições estéticas, filmes e imagens. Também é preciso estarmos atentos à pretensão de “pureza”, “originalidade” e “homogeneidade”, a exemplo de movimentos secessionistas, partidos nacionalistas, etc. A esse respeito sua análise dos procedimentos do Estado Islâmico é um dos pontos altos da obra. A propósito, como vimos, o EI voltou ao noticiário na semana passada por ter reivindicado um atentado terrorista no Irã.

Emcke lista a ingrata ascensão, nos últimos anos, dos partidos nacionalistas conservadores em países como Holanda, França, Áustria, Hungria, Reino Unido, Suécia, Dinamarca, Suíça e Polônia. Tais partidos sonham uma nação com “[…] uma cultura e religião ‘homogêneas’ ou, alternativamente, uma nação com um povo ‘homogêneo’”. Busca-se num romântico “povo”, à Rousseau, um poder que emana diretamente de cidadãos autônomos. Não por acaso, entre nós, um cartaz sempre se ergue nas mãos de excitados bolsonaristas: “Supremo é o povo”. E por muito pouco não tivemos um Supremo desfigurado em nome dessa pretensa e excludente soberania popular. De resto, todo o governo Bolsonaro não foi mais que uma permanente tentativa de excluir o contraditório, instituindo um “nós” que ofende e odeia todos os outros.

Para concluir, ressalvando o muito que ainda haveria por comentar, cabe dizer que “Contra o ódio” é uma veemente defesa da democracia, dos Direitos Humanos e de uma sociedade plural, inclusiva, que propicie a todos uma convivência política como a preconizou Hannah Arendt. O capítulo final, “Elogio ao Impuro” é um elogio ao pluralismo e à diversidade, pois só isso pode nos assegurar uma coexistência pacífica e civilizada; nas palavras da própria autora: “A pluralidade dentro de uma sociedade não implica a perda da liberdade individual (ou coletiva), mas, pelo contrário, é o que garante essa liberdade