Há 22 anos publiquei no Valor Econômico (3/7/2001) o artigo “Microeconomia da empresa religiosa”. Lembrei-me disso ao ler, recentemente, que existem em nosso país “mais igrejas e templos do que escolas e hospitais somados” (Exame, 2/2/2024). Não sei se faz sentido comparar essas grandezas, mas parece-me, realmente, que temos igrejas de mais e educação de menos. Na verdade, o Brasil onde se ganha muito dinheiro com pouco esforço não é feito só de igrejas, mas também de emendas parlamentares, bolsas-famílias, desonerações de impostos e salários astronômicos de juízes, procuradores, fiscais da Receita. Desse jeito, não há Jesus que nos salve.
De todo modo, quem quiser entender porque temos mais igrejas do que escolas, um bom começo (acho eu) poderia ser a releitura do artigo referido, que reproduzo abaixo.
Microeconomia da empresa religiosa
A expansão das seitas religiosas que funcionam como autênticas empresas representa um importante fenômeno contemporâneo, especialmente no Brasil. O que são essas “religiões do lucro”? O que explica sua fantástica multiplicação? Por que algumas delas se tornaram organizações de grande porte, com atuação multinacional, como a “Universal do Reino de Deus” e a “Deus é Amor”?
Pode a teoria econômica responder a tais perguntas? Com certeza, sim. Por um lado, porque os elos de dependência entre religião e economia sempre existiram. Para funcionar, qualquer Igreja precisa cobrir seus custos: quem sustenta o padre ou pastor? Como é paga a manutenção dos templos? Por outro lado, porque as organizações religiosas têm sido mais e mais concebidas como empreendimentos geradores de receitas, pela venda de ilusões embaladas em linguagem bíblica – uma boa definição para as religiões do lucro. Sua simples existência já justifica falar-se de uma “microeconomia da empresa religiosa”.
Microeconomia de um mercado altamente competitivo, embora nem sempre tenha sido assim. Pois, até meados do século vinte, a Igreja Católica exerceu um virtual monopólio na indústria brasileira de serviços religiosos, oferecendo um produto único, que deveria ser consumido indistintamente por ricos e pobres, jovens e velhos, brancos e negros.
O monopólio pôde ser mantido enquanto o Brasil foi uma sociedade agrária, mas não resistiu à industrialização. Sobretudo porque, junto com a indústria, vieram a cidade, o rádio, a televisão – veio uma visão do mundo mais individualista. Um dia, quebrou-se o encanto: não era mais proibido procurar substitutos para a religião de nossos pais e avós. Estava aberta a competição, condição necessária, embora não suficiente, para o aparecimento de dissidências no próprio catolicismo e, em última análise, para a proliferação de novas seitas.
Quando perderam o monopólio, setores da Igreja Católica trataram de enfrentar a concorrência diversificando seu produto. Assim surgiram a religião-espetáculo, que leva violões e conjuntos musicais para animar as missas; a Teologia da Libertação, dirigida aos jovens com preocupações sociais; a carismática, que promete tornar o imaginário religioso diretamente acessível aos fiéis.
Tal reação garantiu uma sobrevida ao catolicismo brasileiro, mas não eliminou suas desvantagens na competição por receitas e lucros. Pois, apesar de jogar pesado neste terreno, enquanto pôde fazê-lo, a Católica sempre manteve uma posição dúbia com respeito aos bens materiais. (Não era mais difícil um rico salvar-se do que um camelo passar num buraco de agulha?) Devido a isso, quando seu monopólio foi quebrado, o que lhe dificultou manter ativos os antigos modos de acumulação baseados em privilégios legais e em terror moral, aquela Igreja se viu praticamente impossibilitada de crescer.
Claramente, foram os evangélicos que ganharam a guerra. Como bons empresários, eles fizeram quatro descobertas fundamentais: 1. Que o investimento inicial necessário para fundar uma igreja é muito pequeno; 2. Que os custos correntes do negócio também são baixos; 3. Que existe uma demanda praticamente ilimitada por produtos religiosos como hipotéticos ganhos materiais, supostas curas miraculosas e reservas de lugares no Paraíso; e 4. Que é possível vender esses produtos por meio da cobrança de dízimos e da extração de ofertas e doações. Passando da teoria à prática, os novos empresários logo estavam convertendo possibilidades em lucros. Ou seja, os quatro fatores acima, somados à existência de pessoas dotadas de capacidade empresarial, explicam a proliferação das seitas, que continuam surgindo do nada, aos montões.
Mas, se os elementos relacionados no parágrafo anterior favorecem a multiplicação dos pequenos empreendimentos religiosos, como explicar que algumas dessas igrejas tenham crescido espetacularmente? A chave da resposta está no fato de que, a exemplo das drogas, a religião também causa dependência física e mental. Devido a isso, se tiver habilidade para convencer os clientes de que sua particular seita é a única “verdadeira”, o pastor-empresário poderá contar com a fidelidade praticamente incondicional de seus seguidores.
Em microeconomia isso se chama diferenciação de produto, geralmente alcançada com o auxílio da propaganda e artifícios de embalagem. Quanto mais conseguir diferenciar seu produto, mais uma determinada seita reduzirá a elasticidade-preço do mesmo, o que significa dizer que as pessoas consumirão quantidades constantes daquela espécie particular de serviço religioso, ainda que a pressão do pastor para extrair dinheiro de seus fiéis alcance intensidade maior do que a da concorrência. Os empresários que conseguiram um bom resultado nessa empreitada puderam ter taxas de lucro anormalmente altas e, assim, financiar um grande crescimento de sua seita.
Dessa forma, tomadas em conjunto, as características do processo produtivo e as propriedades narcotizantes do produto religioso explicam tanto a profusão de seitas (pois os custos de montar o negócio são baixos e as perspectivas de lucro, altas) quanto a extraordinária expansão de algumas delas (cujos clientes aprenderam a perceber a diferença entre seis e meia dúzia). O acesso aos meios de comunicação em massa, privilégio das maiores seitas, apenas reforça essa última tendência.
Recebedores de tantas bênçãos, imediatamente transformadas em gordas contas bancárias, os novos empresários religiosos têm mesmo é de dar graças a Deus e (como diriam os economistas) a funções de produção e de utilidade muito convenientes. Amém.
(Gustavo Maia Gomes, “Microeconomia da empresa religiosa”, Valor Econômico, 3 jul. 2001)
Análise econômica irrefutável do provimento de uma demanda. Depois de isso é ir a Freud para ver como essa demanda nasce e a psicólogos e psicanalistas mais modernos para ver porque essa demanda continua crescendo no Brasil “lumpen e místico” (como disse uma vez o sociólogo José de Souza Martins, que também já tentou explicar a chegada do predomínio dos evangélicos). Veio junto com a migração rápida do campo pra cidade, a urbanização e a perda de de um senso de comunidade.