Comentou-se, e com razão, que Bolsonaro queria uma foto do ato da Avenida Paulista. Mostraria força política. O ato teria tudo para dar certo, afinal de contas o ex-presidente foi o segundo mais bem votado nas eleições e, claro, precisava reagir à “injusta perseguição” que vem sofrendo…. Pois veio o prometido ato, sem maior desac-ato [sic], a não ser pelas agressões pastorais do incontornável e feliniano Malafaia.
Não nos afastemos da foto da Paulista. Nada mudou em tão pouco tempo. Por que mudaria? Agora, além do Supremo, tem-se Lula no Executivo para as melhores pedradas. Nada mudou. Bolsonaro é um conspirador nato, um golpista, um desleal com os fiéis e os quartéis. Nada mudou? Mudou, sim. O cerco da Justiça se fecha à sua volta e à volta de seus comparsas golpistas. Mas o que é a justiça humana se há outra que se expressa na “vox populi, vox dei”? A foto da Paulista mostraria uma massa unida, coesa, com o verde-amarelo sequestrado dos brasileiros. A mensagem é cristalina: tocou no Bolsonaro, tocou na gente. A foto seria mais terrível ainda: a letra da Constituição é letra morta, o espírito está nas ruas. Malafaia garantiria o bolsonarismo-raiz, um amigão, a ponto de virar, como se viu depois, um boneco de ventríloquo para o ex-presidente. Para os mais devotos, a foto seria daquelas que ficam na sala de visitas, no “altar” do afeto e das emoções.
No entanto, a foto da Paulista real não mostra a Polícia Federal e suas investigações contra os golpistas. A foto não mostra os 700 mil brasileiros que morreram durante a pandemia da Covid no País. A foto não mostra o desemprego, a fome e a incompetência administrativa do governo Bolsonaro. Nem o desastre de sua política externa. A foto não mostra todas as fotos golpistas que pontuaram a presidência do Jair. Não mostra as reuniões grotescas que o Planalto abrigou. Não mostra o descaso do ex-presidente diante dos que sofreram a sua indiferença à questão social. A foto não mostra seus comparsas militares, não há muito tempo certos de que era imprescindível virar a mesa.
Imaginem se a moda pega, essa de “tirar uma foto” na Paulista ou noutras belas avenidas do Brasil. Investigados, uni-vos. Todos à Paulista! Mostremos o quanto pode a nossa união! Façamos justiça com nossas próprias mãos! Dispensável dizer que bandidos não fogem à moralidade: têm seus códigos, suas leis e, claro, querem sair bem na foto. Julgam-se muito sabidos. Sabidos até serem acordados às 6h15 da manhã pela Polícia Federal, eles que sempre dormem o “sono dos justos”. Como se nota, essa é uma boa hora, pois os galos já cantaram e as pessoas honestas se preparam para mais um dia de trabalho.
Mal posso imaginar o birrento Bolsonaro a desejar a foto da Paulista. Os aliados, enlouquecidos e cheios de dúvida. O receio da chuva, das tempestades paulistanas. Os puxa-sacos mais “estéticos” a sugerir um bom ângulo para a traída beleza do Museu de Arte de São Paulo. O Tarcísio já pensando numa Operação Escudo para garantir uma “festa da democracia”! Os próprios policiais felizes da vida, sem câmaras, a não ser a dos celulares. As reginas duartes empolgadas como se estreassem uma estupenda telenovela! E o protagonista, o mito, com os nervos à flor da pele, dizendo que quer a foto com muito brilho, nada de foto fosca, e disparando “porras” como quem dispara uma metralhadora automática…
Deixemos a imaginação no parágrafo anterior. Na Paulista, Bolsonaro se excedeu com o suposto sucesso: “Uma fotografia para o mundo”. Menos, menos, senhor cupim do Estado Democrático de Direito! Na pele de um pacificador de ânimos, sugeriu que se passasse uma “borracha no passado” e chegou ao ponto nodal de seu desejo: ser anistiado! Nada de anistia! Os órfãos e mortos da Covid, os humilhados e ofendidos, a Constituição Federal, os torturados políticos, as vítimas de sua incontinência autoritária, nada nem ninguém com o mínimo de memória cívica pode compactuar com essa “anistia”, com essa borracha gigantesca apagando o passado, a História e, claro, também comprometendo o futuro.
Não será essa fotografia da Paulista a mãe de um esquecimento corrosivo às instituições democráticas e ao Estado de Direito. Bolsonaro está cercado, falta literalmente emparedá-lo segundo as leis. Chega de desmemória neste país! Chega de tolerância com os mais extremados intolerantes. Uma temporada na presidência ou em outros lócus de poder não pode nem deve ser uma blindagem para uma penca de crimes de lesa-pátria e lesa-humanidade.
“A fotografia para o mundo” diz, sobretudo, que a democracia sabe dar espaço aos seus próprios inimigos. Essa é a luz e o sombrio dilema da foto da Paulista.
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