Vladimir Lenin in Soviet fine art (PICS)

Vladimir Lenin in Soviet fine art (PICS)

Em 1920, o líder soviético Vladimir Lênin publicou um livro intitulado “Esquerdismo: a doença infantil do comunismo”, criticando os comunistas ingleses e alemães que rejeitavam a participação no parlamento e a negociação com partidos liberais e social-democratas. Cem anos depois, e em condições históricas muito diferentes, a começar pelo desmonte da União Soviética e dos países do chamado “socialismo real”, parte da esquerda brasileira padece de outra enfermidade: a doença senil do esquerdismo. Prisioneira de ideias e conceitos ultrapassados pelas profundas transformações tecnológicas, econômicas e sociais que o mundo vem passando, a esquerda senil continua estatista e voluntarista (o Estado pode tudo, e gastar à vontade), protecionista, numa economia altamente globalizada e integrada em torno de cadeias de valor, e com ignorância e desprezo pela eficiência econômica e pelos limites fiscais. A isso se agrega o imediatismo e o assistencialismo com arroubos populistas, introduzindo gambiarras que estão longe de atacar as causas centrais das enormes e persistentes pobreza e desigualdades sociais do Brasil.  

Um dos intelectuais desta esquerda, o sociólogo Emir Sader, escreveu recentemente que a América Latina tem os únicos grandes líderes mundiais na luta contra o neoliberalismo e, para espanto geral, citou Nícolás Maduro, Lula da Silva, os Kirschners, Daniel Ortega e Evo Morales. Ele não citou Petros e despreza Gabriel Boric, jovem presidente do Chile que tem tido posições políticas compatíveis com o mundo contemporâneo, precisamente porque ele critica as ditaduras ditas de esquerda, condena a invasão da Ucrânia e ainda ousou questionar o discurso anacrônico de Lula em defesa de Maduro. Na semana passada, em visita a Pequim, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que a China é uma “democracia efetiva”, adjetivo que ela inventou para adornar o regime chinês com partido único, imprensa estatal, controle e repressão da imprensa (ver relatório da ONG Repórteres sem Fronteira), filtros das redes de informação, como Wikipedia, através do chamado “escudo de ouro”, censura de sites e blogs, restrição à liberdade de expressão.   

Esta esquerda senil continua pensando que a Rússia e a China são comunistas e modelos para o mundo, com uma simpatia incompreensível pelo capitalismo oligárquico e o autoritarismo de Putin. E que os governos desastrosos e destrutivos da Venezuela e da Nicarágua são socialistas e exemplos de democracia; quando Nícolás Maduro esteve no Brasil, Lula defendeu o sistema político da Venezuela que, segundo ele, era uma democracia, mesmo com a manipulação das eleições, a prisão dos opositores, a censura à imprense e o desrespeito aos direitos humanos. Assim, não apenas ignora a História, de acordo com a sua conveniência, mas também desconhece ou esconde fatos e dados do presente. O presidente Lula da Silva, que tem o mérito de ter salvado o Brasil da ameaça golpista de Jair Bolsonaro, é o principal líder desta senilidade político-ideológica. Mais naquilo que diz, do que faz, é verdade. E, principalmente, na política externa, com um certo atavismo antiamericanista (Estados Unidos e até a Europa social-democrata seriam símbolos da perversão da humanidade) que o leva a jogar o Brasil num dos lados da polarização geopolítica global liderado pela China. Para eles não existia um imperialismo soviético e não existe hoje um expansionismo russo. Com esta cegueira cognitiva, a esquerda senil defende ditaduras que violam os direitos civis e os direitos humanos. No caso mais recente, o Brasil se absteve na votação das resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU que estendiam o prazo de investigações sobre crimes de guerra cometidos pela Rússia na Ucrânia e sobre violações dos direitos de mulheres, crianças e minorias pelo Irã desde 2022. 

Paradoxalmente, a esquerda brasileira que envelheceu adora copiar as novidades políticas inventadas pela classe média e pelos liberais norte-americanos, como as lutas identitárias, típicas bandeiras do liberalismo na defesa dos direitos civis e do respeito às diferenças. Neste aspecto, a esquerda está correta porque estes movimentos são justos e representam avanços civilizatórios. Mas o faz de forma exacerbada, quase como a grande prioridade política do Brasil, e ignorando que a defesa dos direitos humanos e do respeito à diversidade dos movimentos identitários são bandeiras típicas do liberalismo, precisamente o que mais a esquerda senil critica, responsabilizando por todos os males da humanidade. Ao mesmo tempo em que defende, corretamente, os direitos humanos dos brasileiros, o governo brasileiro da esquerda senil defende e apoia os regimes que agridem e desrespeitam os direitos humanos; ao mesmo tempo em que contribui para a consolidação da democracia brasileira, o governo e o PT aliviam e protegem as ditaduras ditas de esquerda. 

Para construir o futuro, a esquerda brasileira precisa se livrar do saudosismo atávico da guerra fria e do nacionalismo terceiro-mundista do século passado, do estatismo e voluntarismo e da sua contraparte, o populismo.  Terá que estudar e entender as grandes mudanças tecnológicas e geopolíticas da globalização e assumir com coerência os valores democráticos e civilizatórios. Deve combinar a defesa dos direitos humanos e do respeito à diversidade do liberalismo com políticas e projetos estruturadores de mudanças da sociedade, para além do assistencialismo. Para isso, vai precisar de um Estado eficiente e competente, e terá que apostar numa reforma profunda desse Estado, que está totalmente apropriado pelas corporações, por interesses das oligarquias e dos estamentos burocráticos e pelos lobbies econômicos. É pedir demais.