Ao que parece, sempre houve na humanidade, pelo menos desde que ela se civilizou, a percepção de que poderia haver uma predestinação, que o destino estaria previamente formulado, ou escrito, ou concebido, sendo, portanto, imutável: o que está concisamente expresso na palavra árabe “maktub” (“estava escrito”). Provavelmente, tal percepção seja uma cilada de nosso cérebro, mais uma de várias outras ilusões cognitivas. Ao olharmos retrospectivamente, temos a sensação de que não poderia ter sido diferente: os pontos parecem costurados por uma mesma linha, o tecido parece forte, o desenho parece não deixar dúvida. Eis o destino, que, assim, pressupõe uma autoridade superior: alguém que o tece: deuses, demiurgos e o próprio Deus, cuja opacidade está sempre presente.
Essa ideia fixa da humanidade, a predestinação, ganhou relevo por várias razões. O fato é que astrólogos, profetas, teólogos (vide o calvinismo), místicos e políticos logo a capturaram e manipularam seus desdobramentos e suas implicações sociais. Com um destino previamente dado, a liberdade, um bem que percebemos como precioso, não é mais que ilusória. Muitos personagens, dentre eles os fundadores de religião, teriam o seu percurso existencial antecipadamente escrito, sendo o Cristo talvez um dos casos mais emblemáticos: diante de sua sagrada missão só resta para ele mesmo, sem trocadilho, uma submissão ao destino. É o que o próprio Cristo revela ao aceitar sua paixão e morte, ressalvadas as conhecidas e “enigmáticas” palavras (pelo menos, para os crentes) que profere sob a tortura da cruz: “Pai, por que me abandonastes?”.
Sob a predestinação, nossas vidas estariam previamente urdidas como as de personagens de romance. Todavia, não deixa de ser curioso que muitos escritores falem que seus personagens ganham uma espécie de vida própria, que, por assim dizer, escapa a um destino antecipadamente previsto. Sem o perceberem, esses escritores reproduzem inconscientemente uma visão religiosa que vê na criatura humana a rebeldia que lhe é inerente, afinal de contas, conforme o Gênesis, a vida tal como a conhecemos é fruto da rebeldia encenada no Jardim do Éden. Assim, charmosamente, mas sem que deixem de ser verdadeiros, equiparam-se a Deus, pois conferem à própria obra um toque de vida real…
Evidentemente, numa proporção maior e mais aceita, uma outra percepção antagoniza com a predestinação: aquela de que somos livres, autônomos, enfim, criadores de nosso destino. No entanto, num sentido mais existencial, uma espécie de terceira via talvez possa ser encontrada, pois ora o tempo nos traz os sucessos da vida, ora somos nós mesmos os criadores de tais sucessos. Em tal caso, como no que toca ao bem e ao mal, talvez valha a pena pensar como Spinoza, que nos orienta a tentar ver a realidade do universo como um todo, “à luz da eternidade” (uma luz que, a rigor, nos falta a todos nós!). A nossa liberdade, como de resto tantas coisas que nos cercam, parece semanticamente e/ou epistemologicamente oscilante ou fluida.
Uma das inúmeras e concisas reflexões de Alain (1869–1951) nos diz com simplicidade: “Ama-se mais o destino que se faz do que aquele que o tempo traz” (a rima, claro, é casual). Depreende-se que o autor francês constata que a liberdade traz um gosto especial: o sabor de uma conquista. Por causa desse amor de um destino desejado e realizado, feito com o próprio esforço e criação, tornamo-nos, por assim dizer, mais humanos. Escusado dizer que Alain pressupõe que queremos o bem para nós mesmos. E isso é o que cada um de nós pode experimentar por experiência própria. Por outro lado, “o que o tempo traz” aponta para uma verdadeira inércia. Eis a tonalidade moral da frase do pensador francês: ela nos provoca a ver com mais clareza uma distinção inerente à existência. Dessa forma, parece “menor” o destino que não passa de um fluxo autônomo e que nos prepara algo sem que tenhamos agido para tanto.
Ama-se, enfim, “o destino que se faz” porque nele temos um protagonismo, porque, com isso, aumenta a nossa confiança em nós mesmos. Naturalmente, ele é nosso. E nosso amor por ele é sinônimo de proximidade, senão de interioridade e pertencimento. Mas a frase de Alain, originalmente comparativa, também deixa margem a que amemos, embora com menos intensidade, o destino trazido pelo fluxo do tempo; todavia, ele é menos nosso, e certamente podemos amá-lo pelo que nos traz de bom e pelo que é: outro nome de nossa própria vida.
Meu amigo Paulo Gustavo, você me fez lembrar de Guimarães Rosa quando escreveu: “Ele — que como que no Destinado se convertera — Man’Antônio, meu tio.” Parabéns pelo trabalho.