“O mundo é mágico: as pessoas não morrem, ficam encantadas. A gente morre é para provar que viveu.” João Guimarães Rosa
Ziraldo Alves Pinto se encantou aos 91 anos no sábado, 6 de abril, e o Brasil perdeu um pouco mais de sua graça. Foram mais de 70 anos de uma trajetória multifacetada (diriam por aí que era um artista multimídia) que veio impactando as artes e a cultura brasileiras. Ele foi essencialmente e brilhantemente um grande e irrequieto brasileiro. Da mineira Caratinga para o mundo.
O primeiro contato que tive com o talento do Ziraldo eu era ainda menino, com a revista “A turma do Pererê”, no começo dos anos 60 do século passado. Um traço marcante e histórias divertidas. Na “História da Caricatura no Brasil” de Herman Lima, quatro volumes editados pela Livraria José Olympio Editora em 1963, verdadeira enciclopédia sobre a caricatura brasileira até então, Ziraldo já é rastreado, e parte de sua apresentação no Pererê é citada: “excelente humorista, além de pintor inédito, cronista desconhecido, contista não publicado, poeta premiado várias vezes (em concursos de Faculdade) e autor teatral em perspectiva, já tendo igualmente composto letra e música de várias canções que jamais serão gravadas. Seu talento, como veem, é um verdadeiro mercadinho. A ser inaugurado”. Como vemos aí estava traçado o itinerário do cartunista.
Numa reedição daquelas histórias, em 1972, pela editora Primor, o próprio Ziraldo cita Moacy Cirne, do livro “A linguagem dos Quadrinhos”, que indica que “poucas vezes no quadro geral da literatura e arte brasileiras, uma obra refletiu com tanta agudeza crítica os problemas sociais de sua época”. Tá explicado porque a ditadura obscurantista buscou banir esses quadrinhos assim que deu o golpe.
Depois veio O Pasquim, de cuja criação ele participou, e meu contato, fruição, e também o aprendizado, continuaram, agora acompanhados de figuras reluzentes do humor e da cultura nacional, que faziam frente, aguerrida a seu modo, aos trogloditas de plantão da ditadura, essa cujos 60 anos Lula não quis nem lembrar.
Lembro que adolescente, ainda na década 60 do século passado, já querendo ser desenhista preenchi algum cupom do Instituto Universal Brasileiro que vinha nas revistas da época, oferecendo cursos técnicos por correspondência. Recebi prospectos de um de desenho em que Ziraldo era um dos professores ou instrutores, mas não cheguei a fazer o curso, uma pena. Era ele em mais outra atividade. De qualquer maneira, sofri influência do seu traço, creio que até hoje ainda se pode notar alguma coisa. Mas não me lembro de ter ficado treinando, copiando seus bonecos e personagens, como fiz com outros desenhistas. O impacto da maestria de seus desenhos nos impregna, e a gente os fica estudando com deleite. Há muitos cartuns e charges dele que ainda povoam minha memória.
Ziraldo transitou extraordinariamente por vários âmbitos da comunicação e da cultura. Foi publicitário, quadrinista, chargista, cartunista, cartazista, pintor, designer, jornalista, dramaturgo e, sobretudo, terminou como escritor infanto-juvenil com extensa obra. Foi exímio e marcante em tudo em que tocou, tipo assim um rei Midas das artes.
Interessante notar que o que vai dar mais perenidade a seu nome é justamente um dos seus últimos empreendimentos, se podemos dizer assim, na carreira já exitosa: a literatura infantil. Quando se dedicou a escrever “Flicts” (1969), “O Planeta Lilás” (1979) e “O Menino Maluquinho” (1980) já era um artista de projeção nacional e até internacional. E, sintomático, um último empreendimento seu no mundo editorial foi o lançamento da revista A Palavra, em 1999. Justamente, seu reino terminou sendo a palavra. Da palavra falada, da palavra escrita, da palavra desenhada. Não é à toa que na imprensa se noticiou seu falecimento relacionando-o ao Menino Maluquinho, o que o liga a um amplo público, de muita gente que na sua infância teve contato com suas palavras e histórias.
Ziraldo era um ser alegre, luminoso. Engajou-se nas lutas de seu tempo, principalmente contra a ditadura, que já no seu primeiro ano ceifou a revista “A Turma do Pererê”, o que dava bem a medida do que viria a ser aqueles anos de chumbo. Foi preso algumas vezes, até ou principalmente nos tempos do Pasquim. Era um intelectual engajado, denominação que parece antiquada nos tempos que correm, mas que o caracterizava; viveu e debateu as questões políticas da época, com seu traço, sua palavra e sua presença.
Nesta semana da morte do grande cartunista coincidentemente eu tinha encomendado, pela Estante Virtual, livros de dele, mesmo conhecendo já muitos de suas charges e cartuns no seu tempo de publicação: “A última do Brasileiro” (1975) e “20 anos de prontidão 1964-1984” (1984). Não deixa de ser uma forma de mantê-lo em nossa memória.
Temos que apelar para a memória, porque com Ziraldo vai um pedaço de nossa alegria e inteligência.
Excelente texto, bela homenagem!
Viva Elson! Viva Ziraldo!