O grande historiador francês Jules Michelet (1798–1874), em sua conhecida obra “A Bíblia da Humanidade”, nos lembra da milenar e grata presença do cão na trajetória da humanidade. Registra ele: “Os livros da Pérsia e da Índia recordam agradecidamente que o cão foi primitivamente o salvador da humanidade […] A recompensa vê-se no Mahâbhârata, em que o herói recusa o céu, o paraíso, se lá não entrar com o seu cão”. Voltando aos dias atuais, lemos, mas sem qualquer espanto, que perder para a morte um animal de estimação, segundo os psicólogos, equivale a dor de perder um filho. O luto é profundo, e para tanto as razões são óbvias.
Não obstante os pets cada vez mais marcarem presença nos lares brasileiros e em espaços públicos como shoppings e hotéis; não obstante esses pets serem, como dizem, “o amor da vida de alguém”; não obstante os grandes e importantes mamíferos (e não só eles) serem, conforme a última palavra da ciência, seres sencientes, ou seja, capazes de experimentar sentimentos supostamente apenas humanos, como dor, angústia, solidão, alegria, etc., boa parte da humanidade ainda é indiferente, em seu antropocentrismo, aos direitos dos animais. Um lado da humanidade que ignora ou finge ignorar a “revolução copernicana” que está em curso e que, de alguma forma, conecta-se àquele simbólico herói oriental que não se via moralmente habilitado a ir para o paraíso sem o seu cachorro.
Pois bem, no Brasil, a reboque de grande parte da sociedade civil, a Agência Nacional da Aviação Civil (Anac) e as grandes companhias aéreas continuam fingida ou pesadamente ignorantes de que os animais merecem respeito. Animais sencientes continuam sendo tratados como malas e bagagens. Estas, como se sabe, não dizem um “ai” nem emitem um uivo ou um ganido de dor ou rejeição. Os bichos, por sua vez, vão para o porão da aeronave sem qualquer calmante, onde podem sofrer à vontade com o calor, os ruídos, a escuridão e, claro, uma terrível solidão. Por aí se vê que o herói oriental de que fala Michelet jamais viajaria de avião, a menos que o seu cão fosse na cabine como os demais passageiros e viajassem com as honras que merecem.
Na semana passada, mais um caso de negligência, o do bom Joca, abalou a opinião pública. O belo golden retriever não suportou as longas horas de seu suplício. E agora aquele suplício angustiante e triste faz transbordar de amargura os dias do seu tutor e de sua humana família. Não tenho dúvida de que Santos Dumont teria igualmente se amargurado e de que assinaria embaixo de nossa revolta. Eis um tipo de luto desumano, justamente porque antinatural como também parece a todos a perda de um filho.
Enfim, já passou da hora de a Anac, as companhias aéreas e o Poder Legislativo (onde estão os que se elegeram com a bandeira de defesa dos animais?) criarem um protocolo novo e condizente com o respeito aos animais. A propósito, leio, na edição do jornal “Valor” de 26 de abril, que as “Aéreas prometem mudar transporte animal”, que, em dez dias (!), apresentarão “um conjunto de sugestões para aperfeiçoar os protocolos de tratamentos de animais transportados nos aviões”. “Aperfeiçoar” é um aéreo eufemismo, quando o que temos é indiferença e um tratamento vil e negligente. É preciso mudar profundamente, inclusive com a conscientização dos funcionários. Por ora, essas propostas são vagas e não nos fazem abanar a cauda! (sic). A matéria do “Valor” ainda fala que o próprio presidente Lula teria cobrado à Gol, a fúnebre transportadora de Joca, esclarecimentos sobre a morte do cachorro. No mais, pode-se dizer que faltam dados claros sobre o transporte de animais, sobre a demanda, sobre a técnica dos procedimentos, etc.
Uma companhia aérea, “de cujo nome não quero lembrar”, não chegou a matar ou perder a minha cadela vira-lata, mas causou extremo mal-estar a mim e a minha família porque até a hora do voo ninguém da empresa sabia informar se ela viajaria ou não. Infelizmente ou felizmente, a nossa cachorra padeceu o que estava programado em sua viagem e, com muita raça, chegou a bom porto; todavia nós sofremos os atropelos do péssimo atendimento da companhia. As aéreas que tanto “ligam pontos”, ainda não ligaram estes pontos essenciais: os animais e suas famílias, ou melhor, os animais a suas famílias. É uma tolice. Temem custos? Temem pelos? Temem males? Talvez um voo só de pets e seus acompanhantes na cabine, com a dignidade a que fazem jus, não por serem “o amor da vida de alguém”, mas por representarem um valor em si mesmo, talvez fosse um sucesso de lucro e um êxito de aprovação geral da sociedade. Será utópico? Muito do que hoje vemos, vivemos e compartilhamos um dia já foi utópico. “Ontem imaginação, hoje evidência”, como escreveu o poeta e pintor William Blake.
Animal maltratado sou eu, que tenho que aguentar latido de cachorro aqui o dia inteiro e em horário imprevisível, que os cachorros, grandes e pequenos, aqui viraram uma praga igual aos pombos em Veneza, que os turistas gostam de alimentar. Então imagino que esta crônica de Pasulo Gustavo será popular. Aposto que a Mel, aquela que soltou os animasi que estavam num laboratório sem nem apurar se eles podiam sobreviver soltos, via gostar. Só espero que eu nunca seja obrigada a viajar num avião com um cachorro sentado ao meu lado, com ou sem gaiola. Se forem inventar de levar cães na cabine (e espero que seja com uma passagem paga também para o animal), peço que as empresa aéreas garantam o direito de trocar de lugar para quem quiser ficar longe dos bichos que latem. Nas cidades, felizmente, aprovaram um limite de decibeis em ruido além dos quais se pode reclamar no PSIU. Ruido diminuiu. Mas para a sinfonia dos cachorros não vale o limite dos decibéis. No Brasil místico agora inventaram que ter um cão (além de ser acessório fashion) é proteção do meio ambiente. E pelo visto a poesia de uns é a distopia de outros…