“No meio de uma guerra com dezenas de milhares de mortos e feridos, temos que manter viva a única alternativa que oferece uma solução política tanto para israelenses quanto para palestinos: dois estados, vivendo lado a lado, em paz e segurança”, disse o Primeiro-Ministro Jonas Gahr Store ao anunciar, na quarta-feira 24 de maio, que a Noruega reconhecia a Palestina como estado. Antes que o dia terminasse, os governos de Irlanda e Espanha comunicaram decisão idêntica.

O Primeiro-Ministro da Espanha, Pedro Sánchez estivera no mês anterior em Oslo e em Dublin articulando a declaração conjunta, conforme informou ao Parlamento em Madri na manhã do 24 de maio. Já nos primeiros dias de abril, ao começar uma visita a Jordânia, Catar e Arábia Saudita, Pedro Sánchez informou que a Espanha iria reconhecer a Palestina como estado. No Parlamento defendeu a decisão essencialmente com o mesmo argumento de que a solução dos dois estados para Israel e Palestina estava em perigo. Mas aos parlamentares espanhóis falou claro: estava em perigo pois o Primeiro-Ministro Netanyahu não tem plano de paz para a Palestina; bombardeou hospitais, escolas e moradias, punia mais de um milhão de crianças com fome, frio e terror, produzindo com isso mais dor, destruição e rancor. Assim perpetuava o ódio e punha em perigo a solução dos dois estados, “a única justa e duradoura” para o conflito no Oriente Médio.

Quando ainda na mesma manhã os dois outros chefes de estado, Simon Harris e Jonas Gahr Store, falaram com a imprensa, tiveram a mesma linha de argumentação, mas usaram linguagem mais diplomática – digamos. Harris lembrou a luta por independência da Irlanda e Gahr Store reafirmou a convicção norueguesa de que a solução dos dois estados é do interesse da nação israelense. Nem precisaria recordar essa posição histórica da política exterior norueguesa, de pé desde a tentativa dos Acordos de Paz de Oslo de 1993.

O trio não quer que se entenda esse passo do reconhecimento unilateral como anti-Israel, e sim, como defesa da solução de dois estados, que fica cada vez mais distante a cada nova guerra. Claramente condenam o grupo terrorista Hamas. Segundo o Primeiro-Ministro da Noruega, o reconhecimento da Palestina como estado seria um “apoio a forças moderadas que num conflito longo e cruel se encontram na defensiva”. E conclui que não pode haver paz sem um estado palestino.

Por que tal reconhecimento por três países europeus pareceu surpreender o mundo? Deu manchetes na imprensa internacional, que então revelou indícios prévios do que viria a acontecer. De Tel Aviv, ao convocar seus embaixadores nos três países, partiram protestos de indignação e desafio que não chegam a ser novos: reconhecer a Palestina seria transformar-se em joguete do Irã e do Hamas, seria “alimentar o extremismo e a instabilidade”, seria “premiar o terrorismo”.

É verdade que a ideia dos dois estados está sendo apresentada, repetidamente, há mais de 30 anos, sem passos concretos para a sua concretização. Existiram movimentos de paz florescentes tanto em Israel quanto entre palestinos, nos anos 1990. “Budrus”, o belo documentário de “Just Vision” dirigido por Julia Bacha revelou ao mundo um deles. Soubemos de outros no livro impressionante de Gershon Baskin, “In Pursuit of Peace in Israel and Palestine” (Vanderbilt University Presse 2017). Mas essas “forças moderadas” … “se encontram na defensiva”, como bem observou esta semana Gahr Store, o primeiro-ministro norueguês. Na ofensiva estão extremistas, os do Hamas e a “pequena minoria” que, como disse Benny Gantz, o principal rival de Netanyahu, “tomou a ponte de comando do navio Israel e o leva a bater nos rochedos”. (“The revolt against Bibi”, The Economist, 25/05/2024) Quem ainda celebra que um dia, em 1994, o Prêmio Nobel da Paz foi dado a Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat, em conjunto?

Só que agora, ao se olhar para a faixa de Gaza e pensar em alguma solução para o pós-guerra, ainda não apareceu ideia melhor que a dos dois estados: “como será depois da guerra?” “quem vai reconstruir Gaza?” “quem vai administrar Gaza?” “como vão sobreviver os palestinos?” “como evitar que o vazio de comando no Hamas deixado pelos líderes mortos na guerra seja apenas preenchido por novos radicais revoltosos?” A acusação política que mais se faz ouvir contra o governo de Israel no momento atual, fora o desastre humanitário e responsabilização pela falha de segurança, é a de que não tem estratégia para além da guerra.

Formalmente, o reconhecimento da Palestina como estado por parte de mais três países europeus não altera grande coisa na ordem legal internacional. Já reconheceram a Palestina 143 (inclusive Brasil) dos 193 países membros da ONU. Agora são 146 e pode ser que o número aumente. A União Europeia sempre foi a favor da solução dos dois estados, ainda que não tenha uma posição oficial unificada. A diferença que existe é que alguns países europeus, notadamente os maiores, Alemanha, França e Itália, consideraram até agora que o reconhecimento da Palestina deve ocorrer como parte de uma solução de dois estados negociada entre Israel e Palestina. A Suécia reconheceu a Palestina em 2014. Vários países europeus (Polônia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária) haviam reconhecido a Palestina antes de entrar na União Europeia. No início deste ano o Reino Unido declarou que reconheceria a Palestina como parte de esforços da ONU para chegar a uma solução de dois estados. Países árabes, bem como autoridades palestinas, têm defendido o reconhecimento da Palestina como parte da normalização de suas relações com Israel, mas agora têm apelado aos países ocidentais que reconheçam a Palestina como um passo inicial para tentar encerrar o longo conflito. A Palestina conseguiu na ONU, em 2012, status de Estado observador, mas em 02/04/2024 seu representante na ONU, Riyad Mansour, pediu de novo que a Palestina seja considerada membro pleno.

Claro que cada país tem também sua lógica interna que influencia as decisões de política exterior. Nos três países que anunciaram sua decisão dia 24 de maio o reconhecimento da Palestina é popular, e há eleições para o Parlamento Europeu de 6 a 9 de junho. A Noruega não é membro da União Europeia, e a pressão da opinião pública é outra. Em abril deste ano, durante uma conferência do seu Fundo Soberano (o maior do mundo, de 1,7 trilhões de dólares) com administradores de ativos sobre como melhor investir, manifestações diante do prédio do Banco Central, sede da reunião, pediam que o fundo retirasse suas aplicações em Israel. No relato de Richard Milne, do “Financial Times”, “Parem de investir em companhias que contribuem para genocídio e ocupação” é o que dizia um manifestante.

Será preciso examinar em separado os argumentos jurídicos do TPI, Tribunal Penal Internacional (International Criminal Court) em Haia, para aprovar mandatos de prisão de três chefes do Hamas, Yahya Sinwar, Mohammed Diab Ibrahim Al-Masri (Delf) e Ismail Haniyeh, bem como do Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu e seu Ministro da Defesa Yoav Gallant, por crimes contra a humanidade e crimes de guerra diferentes, derivados do feroz ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro e da ofensiva retaliatória de Israel. https://www.icc-cpi.int/news/statement-icc-prosecutor-karim-aa-khan-kc-applications-arrest-warrants-situation-state E é preciso analisar o protesto do governo de Israel que considerou “absurda e distorção da realidade” a investigação do TPI, e injusta uma comparação entre “Israel democrático e assassinos em massa”.

Só não há como considerar mera coincidência que o trio de países europeus tenha antecipado sua decisão de reconhecer a Palestina como estado apenas alguns dias depois de sair a público, em 20/04/2024, o comunicado do Procurador do TPI, o jurista britânico Karim Khan. Sobretudo se lembramos que há no TPI uma discussão antiga sobre sua jurisdição, sobre até que ponto o TPI poderia tratar de atos em estados nacionais apenas. Agora, antes da decisão, há longo arrazoado defendendo que o TPI tem, sim, jurisdição na Palestina. Tampouco é coincidência que no mesmo dia 24 de maio tenha sido emitida uma nova ordem de direito internacional provisória, relativa à guerra em Gaza, no âmbito de investigações da Corte Internacional de Justiça, o principal órgão judiciário da ONU. https://icj-cij.org/sites/default/files/case-related/192/192-20240524-ord-01-00-en.pdf

Já no início de abril, quando ponderava junto de outros governantes o reconhecimento da Palestina, Pedro Sánchez advertiu que era preciso observar as ações na ONU e outros órgãos internacionais. Ainda que importem também medidas bilaterais como, em especial, restrições no fornecimento de armas. Em sua essência, são ações de pressão que convergem, são, todas elas, tentativas de conter a insânia.