Enquanto o Brasil não para de citar e premiar poetas absolutamente medíocres, um autor, que se apontaria bissexto, prova que foi “poeta pela graça de Deus”, como diria Manuel Bandeira, e “sem pressa e sem descanso”, como complementaria Goethe. Por seu talento e por sua fibra de articulista, sem falar da psicanálise, da psiquiatria e de sua sensibilidade política, também nunca foi um ausente da cena cultural brasileira. Além disso, teve a sorte e o privilégio de pertencer a um grupo de alta voltagem literária, formado, entre outros, por Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.

Antes de dizer seu nome, acrescentarei apenas que “poeta esquecido” é um tema recorrente, o que não espanta num país desmemoriado como o nosso. O “grande poeta esquecido” é um tema dramático, causa remorsos e nos lança ao coração tremendos sentimentos de culpa. Perguntas óbvias perpassam nossos espíritos: continuará esquecido? Farão novas publicações suas? Etc. Enfim, a posteridade se estende insondável à memória dos artistas, embora a curiosidade pelo amanhã persista até após a morte(!), como lemos nestes memoráveis versos de Mauro Mota: “Tem um instante só de / visão póstuma / para ver como a vida / continua”.

Se vivo estivesse, este ano Hélio Pellegrino (1924–1988) teria completado cem anos de nascimento. Era brilhante e eloquente. Lembro-me bem de suas fugazes aparições na televisão. Falava com fluência e propriedade. Seu grande amigo Nelson Rodrigues aqui e ali o citava com frequência e ternura. De uma forma injusta (mas provavelmente desejada), o poeta foi ficando “para trás”, deixando sobressair o psicanalista, o prosador e o militante da esquerda democrática. Ocorre que era sobretudo um poeta, e julgo que dos melhores da literatura brasileira. Mas que pudor tremendo e que recato encantador! O mineiro Hélio Pellegrino, muito mineiramente, preferia a discrição, não por acaso seus poemas parecem tão impregnados de silêncio, o sábio silêncio das altas serras de Minas.

Em 1993, cinco anos após a morte de Pellegrino, seu amigo, o escritor e jornalista Humberto Werneck, também mineiro de Belo Horizonte, publica “Minérios domados, poesia reunida”, obra que bem merece uma segunda edição, pois há que se divulgar e conhecer um poeta que se iguala aos melhores do País e do seu tempo. E Hélio tem muito a ensinar às novas gerações, para as quais a Poesia parece ter virado apenas “lacração” em redes sociais ou uma simples pilha de palavras e frases. Já nosso poeta transita entre minimalismo, fanopeia e musicais sonetos com a desenvoltura de um mestre; com ele, estamos não só em presença de um poderoso criador de imagens como diante de alguém atento ao ritmo e à criação de metáforas. Seu poder de síntese e de despojamento jamais atrofia sua sensibilidade. Em suma, estamos em companhia de um grande lírico, mas um lírico que reúne uma “alma poética e um espírito geométrico”, como sentenciou Joubert. 

Como sugeri acima com o termo “minimalista”, muitos poemas de Hélio Pellegrino são curtos, “calados” e constituem, de uma forma evidente, a celebração de um instante, o registro de uma epifania, geralmente tocado por uma espécie de pacificação e de êxtase ante a natureza e as coisas. Há gravidade, mas gravidade sem amargura, na qual as palavras parecem dançar sem qualquer lamentação. A própria morte é associada a um amanhecer. Evocações de paisagens e de amplos espaços são frequentes, a exemplo do que encontramos em “Serra da Piedade”, em que o imaginário aéreo liberta a montanha fechando o poema: “No espinhaço da serra / o tempo deixa de respirar / A grande síncope desvenda / a verdade da pedra. / O espaço infinito desata / o silêncio de Deus. / A montanha tamanha / trespassada de azul / torna leve a eternidade: / Pedra sabão pedra balão / — no ar”. 

Mais exemplos do imaginário aéreo de Pellegrino também achamos em outros breves  poemas, como “A morte atravessa…”: “A morte atravessa os meus ossos / e torna comovente o azul da tarde. / O tempo é uma asa”; “Marinha”: “Gaivota / Fagulha de mar / no espaço que arde / Lâmina de água livre / em voo e salto / Desejo alto”; ou neste outro pequeno poema escrito em Roma: “Nesta espádua de pedra / pousam pássaros, / deslembrados de sonhos, / tempos, césares: / — eles, sim, são eternos”. Também em “As samambaias” há o ressoar dos ares: “As samambaias / debruçadas no espaço / esplendem seu silêncio. / Que farta verdade / em seu verde farfalha!”. Mesmo o que é abstrato ou oferece limites, adquire uma inesperada liberdade, abre-se para uma ontológica leveza como nestes versos: “Este vigor da palavra / — leve, levíssima asa — / é o teto do corpo, espaço / aberto às estrelas — casa”.

Eis, numa precária síntese, um pouco da grandeza lírica de um poeta que optou por escrever uma poesia existencial em familiar sintonia com outros grandes de seu tempo, a exemplo de um Manuel Bandeira, de um Jorge de Lima e de seus amigos Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes. E soube ser ele mesmo, movido por leveza e lucidez, percebendo a poesia como uma aceitação da vida mais profunda, uma fruição tão sensorial quanto ontológica, pois “O agora é sem nostalgia. Segredo claro” e “[…] resta o que será: porta sem medo, / coração sem soluço e sem degredo”.