Baudelaire

Baudelaire

“Amigos, bem sei que ninguém se ruboriza mais. O último rubor que se conhece ocorreu num baile da ilha Fiscal. De então para cá, nunca mais ninguém ficou ruborizado. Mas este campeonato tem sido uma experiência fabulosa para nós brasileiros. Vocês sabem o que dizem os jornais ingleses do nosso futebol ? Dizem apenas e textualmente o seguinte: Devia ser proibido jogar tão bonito”. No dia 14.06.1970.

Nelson Rodrigues, em À Sombra das Chuteiras Imortais (Companhia das Letras, São Paulo, 1993, pg. 184).

Nada melhor, nesta terça-feira prosaica, do que conversar com cronistas. Não qualquer cronista. Mas alguns dos mais apreciados cronistas do país.

Mas, antes, vamos a uma questão conceitual. O que é uma crônica ? O que a diferencia de um artigo ?

O artigo é opinativo, a crônica é narrativa.

O artigo é forte, a crônica é leve.

O artigo é longo, a crônica é ligeira.

A crônica troca a realidade pelo sonho. O dia pela noite. O abstrato pelo cotidiano. Transcende tempo e lugar.

Escrever crônica é enamorar-se do mundo, disse o cronista e poeta, Paulo Mendes Campos. Que também escreveu um poema: Domingo azul do mar. E o cronista Carlinhos de Oliveira acrescentou: Domingo azul do bar.

Um exemplo. De Paulo Mendes Campos, abertura da crônica A Aurora: “A aurora chegou vestida de cor-de-rosa, passou pela vidraça, passou através de minhas pálpebras, acordou meus olhos. Mas não me acordou a alma, que ficou dorme-não- dormindo, boba e semi-iluminada. Depois, ela, a aurora foi esvoaçar sobre os telhados e era como se aquilo estivesse acontecendo no passado”.

Charles Baudelaire foi poeta fundador da poesia moderna francesa. E compôs também poema em prosa. No Brasil, a crônica seguiu a prosa modernista de Mario de Andrade e Manuel Bandeira. Depois ganhou autonomia, largura e consistência literária. De cronistas puros, cronista poetas, cronistas compositores. De onde se vê que a crônica é multifacetada. Porque encontra espaço no talento de vários escritores. Cada um, cronista, a seu estilo.

Rubem Braga é ecológico e amoroso. Gostava muito de plantas e mulheres.

Antônio Maria é ardoroso e melancólico. Gostava da noite e do Recife.

Carlos Drummond de Andrade é provincial e universal. Gostava dos anjos de Minas e do mar do Rio.

Clarice Lispector é misteriosa e urbana. Gostava dos amigos e desgostava de Zurique.

Oto Lara Resende é barroco e transcendente. Gostava de comunicação e de almoçar com amigos.

Paulo Mendes Campos é lírico e cético. Gostava de uísque e de escrever.

Por falar nisso, dos muitos cronistas, de que li suas crônicas, soube que bebiam uísque ou vinho. Nunca soube de cronista que bebesse cerveja. Vinicius de Moraes, por exemplo, dublé de poeta, compositor e cronista, tomava uísque. Chico Buarque, poeta e compositor, uísque. Paulo Mendes Campos, uísque. Talvez só Nelsinho Mota tome cerveja. Não sei.

Tarda a noite, E, eu, aqui, como não sou poeta nem compositor, digito estas notas. E, melhor que tudo, concluo com o poeta e cronista de Itabira, Drummond:

“Em janeiro choveu a potes na cidade, mas onde chover dez vezes mais do que em qualquer outro lugar, foi na Rocinha. Isso me garantiu Biguá, uma semana depois da enchente trágica. Apareceu arrasado no escritório. Seu barraco não rolou no abismo porque Deus não quis. Ou porque, a certa altura, achou que era exagero ferir assim um humilde. Mas o quartinho das crianças ficou sem telhado, os moveis fugiram na correnteza e se vier outro toró …

– Coragem, Biguá, pelo menos não morreu ninguém em casa.

– Não morreu porque pobre não morre, senão acabava a pobreza na Terra”.