Em companhia de sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, o escritor e pacifista israelense Amós Oz, falecido em 2018, escreveu um magnífico ensaio que nos ajuda a compreender profundamente o povo judeu e a sua cultura. Refiro-me a “Os judeus e as palavras”. Pai e filha, sem que tenham optado por uma divisão explícita do conteúdo da obra, ou seja, com textos exclusivos de cada um, escolheram se apontar como intérpretes específicos quando acharam necessário e importante; assim, mantêm, a um só tempo, unidade e diversidade em cativante soma. O propósito do ensaio, dizem eles, é afirmar que “[…] a história e a condição de povo dos judeus formam um ‘continuum’ único, que não é étnico nem político”. Como assim “nem étnico nem político”? Os autores se apressam a explicar: “Que fique claro, a nossa história inclui linhagens étnicas e políticas, mas não são estas suas principais artérias […] a genealogia nacional e cultural dos judeus sempre dependeu da transmissão intergeracional de conteúdo verbal. Trata-se da fé, é claro, mas ainda mais efetivamente trata-se de textos”.
Ateus, pai e filha têm por língua materna o hebraico e se apresentam como judeus israelenses e seculares. E ambos, por si sós, parecem ser um exemplo do que chamam a questão “intergeracional” de transmissão da cultura letrada: as relações entre pais e filhos e mestres e alunos. Desde o início dos tempos, a escolaridade judaica tem como que uma dupla feição: a doméstica e a extrafamiliar, sendo a doméstica a pioneira, pois já começa logo após o desmame da criança. O contato com a palavra escrita (e, portanto, com os fundamentos da cultura judaica) é, por assim dizer, um segundo leite após o leite materno. A “dependência das palavras” (não quaisquer palavras, mas as que vêm dos livros, como realçam os autores) e a familiaridade com elas sendo alheia à condição social e econômica. Por isso, ao contrário de outras civilizações, “[…] não se precisava ser um garoto rico para ficar pairando em torno do mestre. Alguns dos grandes rabinos eram eles próprios humildes artesãos e trabalhadores braçais”.
Por sua vez, a relação extrafamiliar, a de mestre e aluno, não obstante marcada por amor e admiração, volta-se para as disputas verbais, sendo o discípulo encorajado a criticar seu mestre. Há um incentivo à irreverência, o que é quase uma consequência do “passatempo predileto” dos judeus: fazer perguntas. O que importa, ao fim e ao cabo, é a salvaguarda da sabedoria coletiva da sociedade. Por seu turno, a irreverência leva ao humor, e aqui não custa lembrar nomes de judeus famosos conectados ao tema, a exemplo de Proust (sim, ele mesmo, pois há uma inequívoca face humorística em sua obra), de Freud, dos irmãos Marx, de Bergson, Woody Allen, Jerry Lewis, tantos outros. Por sinal, a Wikipédia registra que, por volta de 1978, 80% dos comediantes americanos eram judeus, muitos dos quais decerto aprenderam a rir dentro de casa e na própria comunidade, à sombra da sinagoga.
O “povo do Livro” de fato criou uma cultura própria com base nos seus livros sagrados, históricos e, para falar como o grande crítico literário judeu Harold Bloom, “sapienciais”, tal se uma longa cadeia de palavras no transcurso do tempo fosse o esteio de toda uma civilização. Por aí podemos ver como Hitler esteve não só moral como antropologicamente equivocado ao pretender o aniquilamento do povo judeu. O líder nazista deparou-se, por assim dizer, para lembrar Horácio, com um monumento “mais duradouro que o bronze”. Como escrevem Amós Oz e sua filha, “Gênesis, Isaías e Provérbios, são as nossas pirâmides, nossa Muralha da China, nossas catedrais góticas”.
Do ponto de vista cultural, não podemos dar conta aqui de toda a erudição sagaz que está presente em “Os judeus e as palavras”. Todavia, um último registro pode destacar uma façanha judaica bastante contemporânea, que é o soerguimento do hebraico moderno. Trata-se, como dizem os autores, “[…] do maior empreendimento linguístico dos tempos modernos”, tendo essa língua, ao longo do século 20, apresentado um gigantesco crescimento de seu número de falantes: “de quase zero para mais de dez milhões”, uma revivência que se deve à sua criatividade cultural nos campos da literatura, do drama, do ensaio e do cinema. Uma produção que transcende o domínio exclusivamente judaico.
Aos nossos dias globais, tomados por neofascismos toscos e por fundamentalismos bíblicos, quando as palavras são usadas para disseminar ódio e mentira, “Os judeus e as palavras” vem nos lembrar que, com o poder das palavras e da literatura, pode-se erguer uma civilização inteira, toda ela baseada na grande poesia, nos debates, no humor, no fomento à inteligência e, para os crentes, no poder da fé. Quem ama as palavras não pode deixar de ler esse livro.
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