Saguin

Saguin

 I see skies of blue, clouds of white

                                                                  Bright blessed days, dark sacred nights

                                                                 And I think to myself:

                                                                 What a wonderful world!

 

A evocação desses versos da canção consagrada na voz de Louis Armstrong me veio pela sucessão de momentos felizes que vivi ontem, dia 26 de agosto de 2024.  Por breves e fugazes incidentes, o mundo me pareceu – apenas pareceu – maravilhoso.

Voltando do Recife, divisei, à margem da BR já no contorno de João Pessoa, uma pequena garça branca.  Caminhava em estreita faixa de gramado, tímida, como que desgarrada, mas com a elegância irrecusável da espécie.  Ao chegar em casa, encontrei no quintal dois saguins de uma família que ainda resiste à perversa urbanização da  Praia Formosa, nas árvores que restam. Um deles deu um salto acrobático do meu pé de fruta-pão para um jasmineiro junto ao muro do vizinho.

E as bênçãos prosseguiram.  Do terraço, vi a corujinha buraqueira, que tem ninho num barranco da praia, de vigília em seu posto, num fio de telefone. A outra – pois se trata de um casal – devia estar na porta do buraco, protegendo os filhotes de um eventual ataque dos carcarás, que, com seu porte altivo de aves predadoras, dão voos rasantes à beira-mar.

Mas o mais surpreendente estava por vir.  Ao dar minhas braçadas, o que tenho feito diariamente, mesmo com um “mar de inverno”, que as ventanias de agosto fazem pouco convidativo – turvo e encrespado – meus pés roçaram em algo levemente áspero. Pensei num imprevisto banco de areia, mas logo vi que se movia, e de repente ele emergiu, quase entre meus braços: um peixe-boi adulto, cuja cabeçona me assustou, no primeiro momento.

Não era bem uma novidade: já tinha tido contato, anos atrás, com outro, roçando em minhas pernas e rondando uma jangadinha, com duas moças assustadas em cima. Chegou a colocar uma de suas barbatanas sobre a jangadinha. Certamente fora criado, ou tratado, ou protegido, num centro de abrigo que fica em Barra de Mamanguape, no litoral norte da Paraíba, e tinha familiaridade com as criaturas humanas. Tive de convencer as mocinhas da absoluta inofensividade daquela criatura, que não tem dentes para morder, nem focinho bicudo como os golfinhos, nem espeto na cauda como as arraias.  Mas desta vez não tive tempo de abraçá-lo: logo mergulhou, e só reapareceu uns vinte metros adiante, mais para o fundo do mar.

No entanto, a realidade do nosso dia-a-dia é bem dura, carente de bênçãos, e é preciso muito esforço de nossa parte para manter a atitude de “otimismo esperançoso”, de que fala o mestre Ariano, em relação ao futuro da humanidade.  A natureza vem sendo impiedosamente agredida pelo bicho homem, espécie em expansão descontrolada, que por tal via pode até, segundo os cientistas, levar-nos a mais um dos episódios de extinção em massa de espécies já vividos, em passado remoto, pela nossa biosfera. Pelo desmatamento, pelo fogo, pela caça, pela pesca predatória, pelos dejetos poluentes, pelo avanço da agricultura extensiva e do cimento das construções sobre o verde das matas.

Aqui mesmo, na minha querência de Formosa, assisto diariamente à demolição de casas antigas, dos primeiros anos do século passado, de indiscutível valor arquitetônico, com seus quintais cobertos de cajueiros, mangueiras, oliveiras, goiabeiras, para dar lugar a prédios de apartamentos gigantescos, sem nenhum atrativo especial. No mar, os “jet esquis”, brinquedo de garotões endinheirados, sem sensibilidade para perceber o encanto silencioso da navegação a vela, cortam furiosamente as águas, espantando os peixes e atropelando nadadores incautos. Mas o que fazer?

Resta-me o consolo de ter captado paisagens e merecido vivências que me fizeram abençoado ao menos um dia, levando-me a sonhar com o mundo maravilhoso de Louis Armstrong.

*  Para o amigo Clóvis Cavalcanti, com as minhas homenagens.