“O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. Vivemos todos ao acaso…”
Quem deixará de reconhecer a atualidade desta análise? No entanto, trata-se de documento do século XIX, recolhido e reproduzido por Álvaro Moreyra, no seu livro “O Dia nos Olhos”. O pronunciamento, do velho Eça de Queiroz, consta da primeira edição do jornal “As Farpas”, editado em Portugal por ele, em parceria com Ramalho Ortigão. Ao transcrevê-lo, o grande mestre da literatura de reminiscências ressalta a idade do texto: 87 anos. Considerando que o livro de Álvaro foi publicado nos anos 50 do século passado, temos aí um doloroso quadro dos nossos tempos, composto há mais de século e meio.
Cabe a pergunta: por que estamos tão mal? Nossa república, mesmo capenga e “relativa”, tem dado sinais de vitalidade: elegemos um líder operário, emigrante nordestino, e uma mulher, ex-combatente revolucionária, que apeamos do poder, de forma legal, trazendo de volta o operário, na carência de melhor opção. Mas agora convivemos com uma pletora de partidos políticos sem nenhuma nitidez ideológica, e uma aberração política chamada, à falta de melhor rótulo, de “presidencialismo de coalizão”. A alternativa parlamentarista, proposta pela Comissão de Notáveis ao tempo da Assembleia Constituinte, foi rejeitada, embora seja a fórmula predominante em quase todas as nações desenvolvidas. Parece ser de difícil compreensão para as antigas colônias portuguesas e espanholas do Novo Continente.
Mas cabe também outra indagação: sempre estivemos assim, numa postura estática de desgraça permanente, séculos afora? Ou houve no Brasil um melancólico processo de degradação política, que nos levou, ao longo dos anos, a tal ignomínia? Proponho um olhar para o passado mais recente, que a minha geração testemunhou: os primeiros anos sessenta do século passado.
Quem eram os ministros do Governo João Goulart? E os parlamentares brasileiros nesse tempo? Quero lembrar que o saudoso Jango, por tantos anos desprestigiado, e tachado de esquerdista e intelectualmente modesto após 1964, tem tido sua imagem recuperada, recentemente, com os livros de Wagner William sobre Maria Thereza Goulart, e as memórias de Almino Afonso, seu Ministro do Trabalho, ainda ativo aos mais de noventa anos, onde encontramos importantes documentos sobre o golpe militar que o derrubou.
Respondo à pergunta. Ministros: o próprio Almino já citado, Afonso Arinos, Tancredo Neves, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Celso Furtado, Santiago Dantas, Valdir Pires, Brochado da Rocha, todos intelectuais de elevado conceito. Senadores: Auro de Moura Andrade, Josafá Marinho, João Agripino… Deputados: Pedro Aleixo, Artur Virgílio, Leonel Brizola, Ranieri Mazilli.. Também estes, como parlamentares, merecedores de respeito, independentemente de sua cor política. Aliás, era fácil situá-los, pois havia alguma nitidez ideológica nos partidos de então: PSD, UDN, PTB, PSB…
E o que vemos hoje? Os numerosos partidos nada nos dizem sobre o engajamento dos seus representantes nas grandes causas do país e da humanidade, com a tímida exceção, talvez, do Partido Verde. Até mesmo aquele dito dos trabalhadores, puro e idealista em sua origem, deixou-se macular na sua experiência de poder, comprometendo o juízo do público sobre a dignidade das esquerdas. Quanto aos ministros, são tantos que mal conhecemos os seus nomes, e tampouco suas qualidades, com honrosas exceções. Aliás, um segundo escalão gerencial tão numeroso, em qualquer organização, pública ou privada, é simplesmente aberrante, não pode funcionar de maneira satisfatória. E a mediocridade é generalizada.
Só podemos concluir que a nossa representação política e parlamentar se deteriorou. Mas por que? Os vinte anos de governo militar, com o Congresso mutilado, manietado e até fechado, podem ter contribuído para a não formação, ou não evolução, de uma classe política emergente. E a nossa “intelligentsia”, em boa parte, foi forçada a emigrar. Quanto aos revolucionários brasileiros, “combatentes das trevas”, findaram imolados numa luta que se revelou inglória. Como a fênix lendária, teríamos que renascer das cinzas.
Mas temo que esta hipótese explicativa não seja suficiente. O problema pode ter também uma dimensão internacional. Consideremos o caso do nosso poderoso vizinho do Norte, que esteve – e corre ainda um pequeno risco de voltar a estar – nas mãos de um indivíduo primário, tosco, xenófobo, arrogante e inescrupuloso. Consideremos também os vários casos na Europa, de criaturas semelhantes, eleitas em diferentes países, no avanço, antes inimaginável, de uma extrema Direita que parecia sepultada ao fim da II Guerra Mundial.
E sendo assim, infelizmente, não tenho solução a propor. Fico apenas com o lamento de Ramalho Ortigão, parceiro de Eça no jornal “As Farpas”, por ocasião do afastamento de Alexandre Herculano, outra figura brilhante das letras portuguesas:
“À tribuna parlamentar nunca mais tornou a subir um homem cuja voz firme, sonora e vibrante levasse até aos quatro cantos do país a expressão viril das grandes convicções… A imprensa decaiu como decaiu a tribuna, assaltada pelas mediocridades ambiciosas e pelas incompetências audazes”.
É isso aí. E o amanhã, como será?
Que ótimo artigo.
Que diagnóstico melancólico e verdadeiro!