Lídia Jorge - escritora

Lídia Jorge – escritora

O último, recente e bem premiado romance da grande escritora portuguesa Lídia Jorge lê-se em pequenos e profundos haustos. Sem embargo do microcosmo que, em conjunto, soerguem, os breves capítulos, notas de um diário de uma idosa, sucedem-se como se bastassem a si mesmos, e só isso seria suficiente para emprestar à obra um encanto particular e fractal. É num misto de reflexão e poesia que a narrativa nos envolve no ambiente do que se costuma chamar “um lar de longa permanência para idosos”, ou “lar geriátrico”, ou “casa de repouso”. 

Note-se que quase sempre tais instituições, por uma exagerada busca de compensação, têm uma denominação positiva e agradável, puxando ao sublime, como se almejassem desidratar da velhice toda uma atmosfera indesejada. No caso do novo romance de Lídia Jorge, dá-se o mesmo, e a residência chama-se Hotel Paraíso, o que seria apenas vulgar se a narrativa não nos fizesse ver que há um lado irônico que contesta o lugar-comum. A sutil caricatura está presente desde a porta principal, onde se exorta os visitantes a que deixem de lado a melancolia ou a tristeza, pois os “residentes” estão à espera “da sua alegria”. Não bastasse isso, há uma “definição poética” composta pelos próprios hóspedes e que, por assim dizer, atesta com mais autoridade a “positividade” do hotel: “[…] Um lugar de amizade / Um lugar de ternura / Um lugar de afeição / […] Um lugar onde todos / Juntos somos irmãos […]”.

Que a velhice é um grande e frequente tema literário, sabe-o sobejamente a autora. Daí o romance não se limitar ao que todos conhecemos de dores e carências dessa fase existencial. Ao que parece, a escritora quis imprimir ao seu livro uma amplitude profundamente humana. Em mais de um momento, a metalinguagem da obra assinala essa sua virtude. Não se trata apenas de sofrer com a finitude e com os percalços da velhice, o que está em pauta é o jogo da vida, como se o livro nos lembrasse a famosa frase cervantina de que “Até a morte, tudo é vida”. 

Mas como transmitir com verossimilhança e força essa amplitude de que acima falamos? Dentre várias outras respostas, uma poderia ser: dispondo no centro narrativo uma idosa que voluntariamente assumiu uma mudança de vida ao se transferir de sua casa para o Hotel Paraíso. É dela, de Maria Alberta Nunes Amado, que se irradia o olhar para uma vida duplamente interna: a que possui como hóspede (aliás, mais envelhecida pela falta de mobilidade própria do que por uma idade avançada) e a que faz de si o foco narrativo, pois são suas notas, à guisa de algum diário, que põem em movimento as demais personagens e as subtramas explícitas ou esboçadas que se entrecruzam no espaço romanesco. De resto, não se trata, o Hotel Paraíso, de um “não lugar”, pelo menos em toda a extensão do sentido desse termo conforme concebido pelo antropólogo Marc Augé. O trânsito, que de fato existe, não impede que a vida ocorra como ocorreria alhures e em toda a sua complexidade habitual.

Quanto ao título do romance, é de se perceber que “Misericórdia” não só aponta para a condição geriátrica, mas para toda a condição humana que, ao fim e ao cabo, nada tem de “paradisíaca”. Sem o uso do ponto de exclamação, a escritora, livrando-se do que seria um prosaico pedido de clemência, ancora os sentidos mais substantivos da palavra “misericórdia”: “com-paixão”, empatia, solidariedade. Não por acaso, a personagem de Maria Alberta é inequivocamente uma personagem solidária, empática e atenta, sem que deixe de ser uma metáfora para a memória e de que tenha um perfil agônico. Sim, ela não se entrega, luta com a solidão e as adversidades. Em suas pensativas insônias, é assediada pela fantástica e fabulosa Noite, que a desafia como uma esfinge a dirigir-lhe perguntas essenciais. Na psicologia da obra, este é o antagonismo fundamental na medida em que psicanaliticamente ele habita as profundezas da personagem.

Longe da nostálgica monotonia que o tema da velhice poderia ensejar, “Misericórdia”, por força do espírito irreverente de sua protagonista, passa ao largo de tal cilada e se ilumina como um grande e fragmentado painel de inquietação, no qual se desenham subtemas como a importunação sexual, o amor entre velhos, as relações de poder, o papel da amizade, os preconceitos, a precariedade do trabalho,  a exaltação da beleza e da vida simples, sem falar que, de um modo implícito e transversal, há toda uma reflexão sobre a força da expressão literária. É essa diversidade, tão lúdica quanto existencial, que nos surge pelo prisma da protagonista e que faz com que o volumoso romance seja atravessado com crescente volúpia de leitura.

Com “Misericórdia”, Lídia Jorge estimula-nos a “recusar o lamento” e a “triunfar sobre a reclusão”. No Hotel Paraíso, tudo seria “insuportável”, diz a protagonista, se “[…] o lugar do exílio não se transformasse por vezes em recreio de crianças, escola, circo, teatro, bordel e manicômio […]”. Enfim,  mais que nos embaraços da idade avançada, estamos em pleno embaraço da própria vida.