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O diagnóstico que predomina não é o correto. Está errado há 30 anos. E assim, por isso, “o Ocidente está baseando decisões existenciais em falsas premissas. Ao fazê-lo, está aprofundando a crise e pode estar caminhando como sonâmbulo para a guerra nuclear.” (p.2) Traduzo as próprias palavras de Benjamin Abelow para indicar o cerne do que o preocupa. No Brasil estamos longe do palco central, mas no centro da ação não são tão poucos os que consideram quase um milagre que armas nucleares ainda não tenham sido usadas. Descobri o autor na tradução alemã, ao acompanhar as eleições estaduais na Alemanha mês passado. Vi que há traduções em sete línguas europeias.

Trato de resumir aqui o perigo que o envolvimento dos Estados Unidos e da OTAN na Ucrânia criaram, desnecessariamente, operando agora sob uma ameaça existencial que eles próprios criaram. É o que está exposto no livro conciso e denso de Benjamin Abelow. O título, na atual “febre de guerra”, talvez cause espanto: “How the West brought war to Ukraine” (Como o Ocidente trouxe guerra à Ucrânia). As 75 páginas são enumeração de fatos e apresentação de advertências e análises de uma série de acadêmicos, funcionários de governo e observadores militares. O subtítulo é mais explícito: “Understanding how U.S. and NATO policies led to crisis, war, and the risk of nuclear catastrophe” (Entendendo como políticas dos Estados Unidos e da OTAN levaram a crise, guerra, e risco de uma catástrofe nuclear). A propósito, foi um espanto, no livro, ler o quanto se realizaram previsões de um antigo diplomata americano, George F. Kennan.

Curiosamente, Abelow, de formação, é médico (e por Yale!), especializado em trauma, inclusive trauma de guerra, e daí é que passou a estudioso de História da Europa. Primeiro, mostra como os objetivos militares do Ocidente na Ucrânia derivam das percepções ocidentais vigentes sobre as motivações de Moscou, que retratam a Rússia como expansionista e Putin como revanchista sem motivo plausível de segurança nacional. Depois enumera as “provocações ocidentais”, as ações dos Estados Unidos nos últimos 30 anos, algumas realizadas solo, outras em parceria:

– Expandiu a OTAN direção leste, em etapas, por milhares de quilômetros, admitindo novos membros e esquecendo garantias que haviam sido oferecidas em 1990 e 1991 no processo de reunificação da Alemanha, durante o qual a Rússia retirou da Alemanha Oriental suas tropas de uns 400 mil homens. Abelow reporta que as garantias oferecidas a Gorbachev e outras autoridades soviéticas não trataram só da expansão da OTAN para a antiga Alemanha Oriental. Mesmo que não existisse uma garantia formal em 1990, o Ocidente agiu de modo a enganar Moscou, pois já em meados dos 1990 ficou clara a trajetória de expansão da OTAN, o que levaria a Rússia a duvidar de que podia confiar nos Estados Unidos e na OTAN. A estratégia de expansão ficou óbvia em 1999 quando a OTAN formalmente admitiu três novos países do Leste europeu.

– Dois anos depois de admitir esse primeiro grupo, Estados Unidos retirou-se unilateralmente do Tratado de Mísseis Antibalísticos, em 2001, e passou a instalar sistemas de lançamento de antibalísticos nos países recém-admitidos. Esses sistemas, alegadamente defensivos, também têm capacidade de acomodar e lançar armas nucleares ofensivas até a Rússia. Em seguida, em 2004, admitiu mais países na OTAN, inclusive a Estônia, que tem fronteira com a Rússia. A essa altura, a OTAN havia avançado quase dois mil quilômetros em direção à Rússia. Em 2008, na Cúpula de Bucareste, a OTAN anunciou que Ucrânia e Geórgia se tornariam membros da OTAN. Os dois países têm fronteira com a Rússia. Há pontos da fronteira ucraniana que estão a menos de 700 km de Moscou. Alguns países europeus expressaram reserva, mas a administração George W. Bush prevaleceu. Moscou, mais uma vez, protestou contra o cerco, como está no famoso telegrama do embaixador americano na Rússia, William J. Burns, “Nyet significa Nyet”. Os Estados Unidos recusaram-se a recuar da inclusão da Ucrânia na OTAN, ainda que isso pudesse ter evitado a guerra.

– Os Estados Unidos ajudaram a preparar um golpe armado que substituiu um governo democraticamente eleito pró Rússia por um governo não eleito pró Ocidente. Protestos antigovernamentais ocorreram na Praça da Independência em Kiev no fim de 2013 e começo de 2014 e foram apoiados pelos Estados Unidos. Esses protestos foram subvertidos por provocadores violentos. Culminaram em um golpe em que ultranacionalistas armados tomaram prédios de governo e obrigaram o Presidente a fugir. Nunca ficará claro qual foi o envolvimento de altos funcionários do Departamento de Estado, exceto pelos 5 bilhões de dólares canalizados de 1991 a 2013 sob a rubrica de fomento à democracia na Ucrânia. A Rússia entendeu que houve participação americana no golpe e em parte por temor que fosse bloqueado o seu uso da base naval em Sebastopol, anexou a Crimeia. As preocupações imediatas de segurança da Rússia foram de novo ignoradas, e a anexação da Crimeia se apresenta como prova na narrativa de expansionismo russo.

– A partir de 2014 os Estados Unidos começaram um programa maciço de ajuda militar à Ucrânia, chegando a mais de 4 bilhões de dólares até 2022 (antes da ajuda que veio depois da invasão russa). O objetivo é padronização para criar a capacidade de operar junto com a OTAN, a chamada interoperabilidade. Em 2016, na sequência de sua saída unilateral do Tratado sobre Misseis Antibalísticos, instalou plataforma de antibalísticos na Romênia. Alega que se destina a deter misseis do Irã e da Coreia do Norte dirigidos à Europa. Mas o sistema funciona também para lançar misseis, e Putin tem insistido que constituem ameaça à segurança da Rússia. A insistência ocidental de que é apenas defensivo não coincide com o marketing da Lockheed Martin.

– Em 2017, a administração Trump passou a vender armas letais à Ucrânia, mudando a política vigente de 2014 a 2017 que enviava apenas armamento não-letal. Foram descritas como defensivas, como se a descrição por si só assim as tornasse. Outros países da OTAN passaram a fornecer armas para a Ucrânia.

– Em 2019, os Estados Unidos unilateralmente deixaram o Tratado de 1987 sobre Armas Nucleares de Alcance Intermediário. Em 2020, a OTAN conduziu exercícios de treinamento na Estônia usando mísseis e de novo na Estônia, em 2021, lançou 24 misseis em simulação de ataque à defesa antiaérea da Rússia. Em julho de 2021 a Ucrânia e os Estados Unidos conjuntamente convidaram para um exercício naval no Mar Negro, envolvendo navios de 32 países. Enquanto enviou mais armas, levou a liderança ucraniana a adotar atitude avessa a qualquer negociação com a Rússia, agravando ameaças à Rússia e colocando a Ucrânia no caminho de uma reação militar da Rússia. Não deveria ser surpresa que a Rússia começou a concentrar tropas na fronteira com a Ucrânia. Em dezembro de 2021 o embaixador da Rússia nos Estados Unidos, em artigo na revista Foreign Policy, notou que a OTAN estava fazendo 40 operações de treinamento por ano perto da Rússia, e repetiu o que fora dito ao embaixador William Burns 13 anos antes, “Nyet significa Nyet”.

Estas são algumas das provocações mais importantes, mas Abelow considera muito mais detalhes e perguntas, e complicações adicionais. Tem explicado, em várias ocasiões, que seu uso do termo “provocação” não implica que a elite de política externa dos Estados Unidos queria esta guerra. Acredita que a maioria estava honestamente tentando estabilizar a paz. Mas acrescenta: “O caminho do inferno está coberto de boas intenções.” Pois as ações empreendidas podiam racionalmente ser percebidas pelos governantes russos como ameaça à segurança da Rússia. Tampouco defende a invasão russa, a liderança na Rússia poderia ter optado por outra direção política. Apenas argumenta que, para conter a escalada, não podemos simplesmente chamar de paranoia a percepção de Putin de ameaça existencial à Rússia.

O argumento é reforçado com um exercício contrafactual: e se Rússia e China dessem passos semelhantes perto do território dos Estados Unidos? Como Washington reagiria se a Rússia, por exemplo, fizesse uma aliança militar com o Canadá e montasse plataformas de lançamento de mísseis a 120 km da fronteira? O que aconteceria se, em seguida, a Rússia usasse tais instalações para exercícios de treinamento de como destruir instalações militares dentro do território americano? A liderança dos Estados Unidos aceitaria garantias da Rússia de que suas intenções seriam benignas?  Não é preciso estudar muita história para responder. Nem é preciso recordar a doutrina Monroe. Aliás, Abelow não é o primeiro a registrar que não há tropas russas nem chinesas no México ou no Canadá.