Começo pelo fim. Uma nota curta, mas bem legível, ao término do longa, informa que nenhum dos oficiais do Exército, envolvidos e indiciados no caso Rubens Paiva, foi punido. Eis um ponto-final amargo que o Estado brasileiro poderia ter evitado se, para tanto, houvesse sido feita justiça pelo sequestro, tortura e morte do político brasileiro. Continuamos o país da impunidade para gáudio dos criminosos. O grande “avanço”, como se sabe, limitou-se ao reconhecimento do óbito em dependências estatais, o que faz a viúva, Eunice Paiva, expressar, numa cena em que fala à imprensa, um sentimento estranho e contraditório: a “feliz” conquista do atestado de óbito, após longa luta judicial, não elimina nem minimiza a dor de suas perdas.
Murilo Hauser e Heitor Lorega, os roteiristas, inspirados no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho da heroína, fizeram o filme de Walter Salles (1956–) ganhar o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza. Merecida láurea, uma vez que mesclaram o possível lirismo de uma literalmente grande família nuclear (são cinco filhos) à frieza de diálogos policiais e burocráticos. Com o lirismo familiar, pontuado de várias cenas afetivas, alegres e solares, prepara-se, por assim dizer, o terreno sombrio onde crescerá a tragédia. Excita-se, dessa forma, uma força dramática que redobra não uma fatalidade, mas uma carga de dor que recairá sobre a família e os amigos e que terá por centro a figura modelar de Eunice Paiva.
Não há como não fazer coro aos comentários elogiosos à atuação de Fernanda Torres. Ouso dizer que é uma interpretação expressionista (não no sentido cinematográfico!), mas num sentido pictórico ou literário. A Eunice Paiva que a atriz “constrói” vem como que das profundezas. Seu olhar, sua expressão facial e todos os seus gestos estão inteiramente tomados por um misto de pavor, expectativa e coragem, além de dignidade e protesto. A verdadeira Eunice amadureceu em meio às suas aflições (o que, em hipótese nenhuma, justifica o seu sofrimento!), e a Eunice vivida por Fernanda Torres cresce com uma interpretação magnífica, que, em meio ao drama político, nos entrega uma personalidade única, que tem algo de apolíneo e que busca forças, ou que as descobre, em meio às chamas de seu calvário pessoal.
Imagino que, com “Ainda estou aqui”, as novas gerações, que, diferentemente da minha, não viveram sob o arbítrio de um regime maniqueísta e feroz, percebam não só o Brasil que ficou para trás, mas o Brasil que permanece tão “naturalmente” autoritário que não nos damos conta de suas cotidianas injustiças. Sob disfarces os mais diversos, o país retrógrado que se quer moderno e emergente continua a pulsar em todos os lugares. O autoritarismo, como observa Lilia Schwarz, “representa o antônimo da democracia”, e “apostar na polaridade, incentivando a intolerância a partir da proliferação de discursos de ódio e que reforçam o binarismo social, significa ir contra o bem comum e trabalhar pela divisão que nos fará menos, nunca mais” (Cf. “Sobre o autoritarismo brasileiro”). Com essas palavras, o que quero dizer aos jovens que assistirem ao filme é que o arbítrio da ditadura passou, o que não passou é o nosso autoritarismo de cada dia: ele ainda está aqui, difuso e persistente.
“Ainda estou aqui” também apresenta uma incontornável singularidade que, não custa imaginar, poderia não ter ocorrido. Refiro-me à participação de Fernanda Montenegro, que interpreta, em poucas cenas, uma Eunice Paiva já muito idosa e tomada pelo mal de Alzheimer. É uma coincidência feliz que duas atrizes, mãe e filha, assumam uma mesma personagem, além de nutritivo à verossimilhança da ficção cinematográfica. Uma verossimilhança igualmente enriquecida não só por uma fantástica reconstituição de época, como por uma fotografia à altura de cenas inesquecíveis. Por sua vez, a presença do Alzheimer torna-se significativamente metafórica, uma vez que esse temível mal nos lembra a própria “demência” social da desmemória e do esquecimento histórico. Essa presença maligna não deixa de ser, à revelia, um símbolo e um alerta.
Além de ser um “drama” na classificação convencional, ”Ainda estou aqui”, para evocar o historiador Peter Burke (1937–), é também um “Lembrete” da nossa história. Burke, com seu discreto humor inglês, recorda-nos que “Houve outrora um funcionário chamado Lembrete. O título na verdade era um eufemismo para cobrador de dívidas. A tarefa oficial era lembrar às pessoas o que elas gostariam de ter esquecido” (Cf. “Variedades de história cultural”). O filme de Walter Salles é, a seu modo, um refinado lembrete.
Parabéns! A explosão na Praça dos Três Poderes mostra o perigo da impunidade.
Não a anistia para os envolvidos no 8 de Janeiro.
Um filme necessário. Um lembrete poderoso, que está levando muitas pessoas às salas de cinema. Interpretações impactantes, reconstituição de época perfeita, que resgatou coisas familiares aos meus olhos de criança que eu era na época. Não entendia o que estava acontecendo, só entendi alguns anos depois.