Livro decorativo

Livro decorativo

Assim como as democracias, os livros estão sob ataque. Refiro-me a livros, por assim dizer, de carne e osso, isto é, códices impressos. O que vou abordar talvez rendesse uma nota de rodapé na clássica obra “História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque”, do venezuelano Fernando Báez, uma autoridade em livros e, claro, do triste fim a que muitos livros chegam desde que foram criados até os dias de hoje. O livro de Báez é uma farta, sombria e instigante elegia ao amargo fim de milhares de obras ao longo da História.

Houve um tempo em que a burguesia lia (ou, pelo menos, fingia ler). Nesse sentido, como se sabe, os mais abastados sempre contaram com um cômodo da casa para os livros e a leitura: a biblioteca. Um cômodo discreto, por vezes amplo, e evidentemente mais silencioso e reservado. Sempre tive uma saudável inveja de tal privilégio, pois não possuo um cômodo específico, mas um incômodo especial: minha biblioteca fica na sala e, portanto, à mercê dos xeretas e, claro, do espanto geral de muitos só familiarizados com estantes de bibelôs e quejandos. Livro hoje é coisa de gutemberguianos dinossauros. Aliás, desconfio que aquelas mãozinhas dos lagartões eram pra segurar livros… Coitados!

Finalmente, abro as páginas de meu assunto e de meu registro. O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, por sinal um craque de nossa língua, em sua coluna do último dia 24 na “Folha de S.Paulo”, mandou bem desde o título: “Vandalizar livros é a última moda decorativa”. O título é fiel, e a ironia do autor vem na linha fina: “Claro que o ideal seria não ter em casa livro nenhum”. Todavia, quer se goste ou não de livros, eles continuam sendo um signo de conhecimento e cultura; seu “mundo”, para citar o poeta Heinrich Heine, é “o mais poderoso de todos os mundos criados pelo ser humano”. 

O colunista da “Folha” enfatiza o termo “vandalismo”; não há outro melhor. É vandalismo mesmo, e, por isso, me referi acima à conhecida obra do Fernando Báez. O bom Rodrigues nos conta que, na maioria dos ambientes residenciais da CasaCor Rio deste ano, os livros aparecem desfigurados. Para combinar com os tons da moda, neutros, beges e minimalistas, “le dernier cri”, os profissionais da decoração puseram nas estantes diversos livros, mas, notem bem, sem capas, quartas capas e lombadas, criando uma sintonia dos miolos brancos e beges com as cores ambientes da moda atual. Enfim, tudo pela sintonia!

Como diria Nelson Rodrigues, “Nada supera o meu divertido horror”! Eis um refinado embaraço aos códices impressos: livros violentados em seu revestimento gráfico, expostos em uma nudez que os une numa pasta contínua e impessoal. Livros agora neutralizados em sua identidade, para não dizer ofendidos e ridicularizados. Obras descascadas como corriqueiras e insípidas maçãs. Autores, títulos, logomarcas de editoras, criatividade de designers, que importam? Uniformizados pelo vandalismo, esses livros lembram prisioneiros de um campo de concentração: estigmatizados, intocáveis, despidos de sua marca de cultura, oprimidos pelo irônico refinamento da barbárie, expropriados de sua beleza e de sua identidade. Serão ainda livros?

Como diria Proust e Freud ecoaria: a perversão humana não tem limites! E o que não diria um Roland Barthes dessa refinada bibliocastia! E o que dissertaria um Umberto Eco, que nos consolou ao dizer: “Não contem com o fim do livro!”. E o que declamaria nosso genial Castro Alves, que, empolgado, acreditava que o livro caía na alma e era uma chuva que fazia o mar!… Que cara estranho esse poeta baiano!