O que aconteceria se, de repente, os trabalhadores brasileiros passassem a trabalhar um terço a menos de horas na semana, como proposto na PEC-Proposta de Emenda Constitucional apresentada pela deputada federal Erika Hilton? A PEC estabelece que a jornada de trabalho no Brasil passe do modelo semanal de 6/1 para 4/3, vale dizer de 48 para 32 horas semanais de trabalho, ou seja, 33,3% a menos. A mudança teria um efeito positivo na qualidade de vida dos trabalhadores, com mais tempo livre para o repouso, a vida social e o desenvolvimento cultural, o que terminaria sendo muito bom para o Brasil. Entretanto, com uma jornada reduzida em um terço, de imediato, o PIB-Produto Interno Bruto e a renda dos brasileiros cairiam drasticamente (em torno dos 33%); o PIB seria reduzido dos atuais R$ 10,9 trilhões (em 2023) para apenas R$ 7,3 trilhões, derrubando o PIB per capita de R$ 49.638,29 para cerca de R$ 32.761,08, com impacto equivalente na renda média dos brasileiros. Seria, evidentemente, um desastre para a economia e a sociedade brasileiras, atingindo os próprios beneficiados pelo tempo livre adicional.
O desastre poderia ser evitado de duas formas. Primeiro, absorvendo outros trabalhadores para ocuparem aquele terço de horas semanais dos quais foram liberados os que estão ocupados. Solução, infelizmente, inviável porque não existe mão de obra disponível no mercado de trabalho, nem em termos absolutos, menos ainda na qualificação de trabalho demandada. Além disso, mantendo os padrões salariais, esta substituição de um terço do tempo de trabalho provocaria um brusco aumento do custo de produção e, portanto, dos preços finais dos produtos. Ou seja, inflação. A alternativa mais consistente e desejável será a elevação da produtividade do trabalho num nível tal que permita aos que trabalham menos produzir muito mais por hora efetivamente trabalhada. Entretanto, este é um movimento que exige um grande esforço na qualificação da mão de obra, na inovação das empresas e na modernização dos sistemas produtivos, das máquinas e equipamentos, cujos resultados, sabemos todos, amadurecem lentamente no tempo. A redução da jornada pode ajudar no aumento da produtividade pelo adicional de tempo livre dos trabalhadores (maior repouso e satisfação pessoal), é verdade, mas apenas se for acompanhada da qualificação, da inovação e da reestruturação dos processos produtivos.
A redução da jornada de trabalho é desejável e viável, mas dependente de mudanças estruturais mais amplas e profundas, rigorosamente ligadas à elevação da produtividade; não se viabiliza com uma simples mudança na Constituição. O tempo de trabalho da sociedade tem diminuído ao longo da história do capitalismo como resultado da redução da jornada de trabalho. De 1860 a 1975, a jornada média de trabalho da Alemanha caiu quase à metade (de 78 a 40 horas semanais – de 13 horas diárias em 6 dias da semana – para 8 horas diárias em 5 dias), acompanhando os ciclos de expansão e elevação da produtividade do trabalho, que coincidem com a ascensão do movimento sindical e da social-democracia. Portanto, em pouco mais de cem anos, o tempo livre médio dos trabalhadores alemães subiu de 90 para 128 horas semanais, que são dedicadas ao repouso, mas também à vida familiar, ao lazer, às atividades culturais e educacionais. Para o jovem Marx, “o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade”, ou seja, quando a humanidade superar a sua relação de precariedade com a natureza. Em certa medida e de forma lenta, é isto que vem ocorrendo ao longo dos séculos no sistema capitalista avançado, graças à revolução científica e tecnológica que gerou um aumento significativo da produtividade do trabalho.
O aumento da produtividade do trabalho, com inovação, reestruturação produtiva e formação profissional de alta qualidade, levaram à acumulação de capital e ao crescimento da economia dos países desenvolvidos, mesmo com a redução significativa do tempo de trabalho. Até porque, com maior tempo livre da população, surgiram novas atividades econômicas, principalmente no setor serviços, com crescimento da economia e geração de empregos adicionais. De qualquer modo, as necessidades da sociedade também crescem numa velocidade tão grande quanto a redução do tempo de trabalho, afastando-se da sociedade de abundância da utopia de Marx. Como disse Hannah Arendt, o tempo poupado pelo progresso técnico não é gasto senão em mais consumo. “Quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites”.
A diminuição da carga de trabalho semanal dos trabalhadores se insere na tradição da social-democracia, que tem sido bem-sucedida na Europa e outros países desenvolvidos. E constitui uma tendência global diante dos enormes impactos previsíveis no mercado de trabalho pela intensificação da revolução tecnológica, cada vez mais, com a robotização e a inteligência artificial. Entretanto, o Brasil tem restrições estruturais à implantação de redução tão drástica da jornada de trabalho: a baixa produtividade do trabalho, estagnada há décadas em razão da precária qualificação do trabalhador brasileiro, condicionada pela deficiência dramática da escolaridade no país, que impede a formação de mão de obra para se adequar às crescentes exigências do mercado. Como formar novos trabalhadores quando cerca de 70% dos jovens que concluem o ensino médio têm formação insuficiente em matemática e português? (apenas 8% dos jovens têm proficiência em matemática). Além disso, o Brasil vive um processo de desaceleração da população em idade ativa, que tende a declinar, a partir de 2035 (estimativas de José Eustáquio Diniz Alves), restringindo a disponibilidade da oferta no mercado de trabalho. A produtividade do trabalhador brasileiro é, atualmente, cerca de um quarto da produtividade do trabalhador americano, que tem uma jornada média de 40 horas semanais, e metade da produtividade do trabalhador da Coreia do Sul, com um limite de 40 horas e 12 horas extras.
Quando a produtividade do trabalho se eleva, torna-se viável, além de justo, que ocorra uma equivalente redução da carga de trabalho, liberando tempo livre para fruição da vida. Mas, para ser implantada, tem que estar articulada a uma estratégia mais ampla de aumento da produtividade, e devidamente ajustada ao seu ritmo e velocidade. Para um país com uma produtividade estagnada e equivalente à metade da Coreia do Sul, é uma precipitação promover redução tão drástica da jornada de trabalho. Mas este é também o país das “leis que não pegam”, por impertinentes ou inoportunas. E pior, quando pegam, podem gerar o efeito contrário ao pretendido (ou prometido).
Uma questão a considerar Sérgio, é o corporatismo sindical que só considera os interesses salariais, sem nenhum foco na evolução social ou no desenvolvimento da economia do País.
Minha filha trabalha numa organização que há alguns meses implantou (experimentalmente) este modelo de 4 dias por semana, que tem foco no aumento do conforto do trabalhador, desde que mantida os atuais níveis de produção.