Tityus – Jusepe de Ribera, 1632, Spain.

 

O atual governo brasileiro, se, por um lado, nos mostra sua sincronia com a ascensão da extrema direita ao redor do mundo; por outro, é, por si só, uma anacronia, capaz de nos fazer retroceder meio século, reimplantando o medo, o autoritarismo despótico, o asqueroso ruminar de ressentimentos, uma polarização simplista, uma violência que parece pulverizada no cotidiano. A democracia, a crítica, a cultura, a ciência e a arte são vistas com maus olhos; vestem o figurino de um inimigo. Doce anacronia para os ressentidos com tempos mais claros, inteligentes, plurais e inclusivos. Doce anacronia para os que amam os individualismos fáceis e se supõem acima da lei.

Os últimos dias em nossa pátria amada não foram nada bons para a democracia. Duas grandes autoridades da República: o vice-presidente e um ministro militar, seguros de seus cargos e de suas medalhas, do alto de uma empáfia que lhes é natural, não hesitaram em debochar das gravações em que, antigos colegas seus, na suprema corte militar, debatiam abertamente a prática da tortura pelo regime da época. Mas o próprio deboche, nas entrelinhas, bem demonstra uma acomodação de consciência, que nada honra dragonas e dragões.

Aqui caberia um longo parêntese político. Façamo-lo curto. A defesa da democracia, por óbvio, não deveria se circunscrever apenas aos opositores do regime (de resto, como ocorria durante a polarização da ditadura militar). E as instituições que hoje (se) dizem funcionar normalmente? Um ruidoso silêncio desaba sobre o País. Haverá algo no ar além da fumaça do Pantanal e da Amazônia? Parecem cada vez mais tímidos e circunscritos os protestos. Faltam veemência e indignação. A democracia murcha, a anacronia é árida. 

Sem argumentos, ou simplesmente montados em falácias como se em garbosos corcéis, há generais que se encantam em pseudofilosofar: “Direitos humanos são para humanos direitos”. Não, no Estado Democrático de Direito, a lei é para todos. Esse trocadilho infeliz sobre Direitos Humanos é um passaporte para a barbárie, nela autorizada a cruel e abominável prática da tortura. Não foi bem essa “filosofia” que fez a glória de um Sobral Pinto ou que iluminou a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao tocar no tema que nos ocupa: “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

Agora, uma anacronia do bem. Anacronia? Não. Nenhuma reflexão mais atual que a do ensaio “Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura”, do cientista político Luciano Oliveira, colaborador desta revista “Será?” e ex-professor da UFPE; ensaio publicado em 1994 pela Editora Brasiliense e reeditado em 2009. É reflexão de um mestre que se esmera num estilo coloquial e claro, mas nem por isso menos elegante e embebido de grande saber histórico e sociológico, quando não de oportuno gosto literário. 

Vale a pena acompanhar Oliveira no seu rastrear da tortura na sociedade brasileira, sobretudo quando nos aponta que, grandemente por obra da escravidão, há uma leniência entranhada na opinião pública. É como se o Iluminismo ainda não tivesse raiado em nossas plagas! Como se um Antigo Regime nos condenasse a um universo pré-democrático. O regime militar, diz o analista, com seu cortejo de “[…] prisões arbitrárias e clandestinas, de torturados e desaparecidos […]” não inventou “ex nihilo” todo um quadro que bem conhecemos. O que ocorre após 1964 é que “[…] a tortura passa a atingir segmentos sociais antes protegidos por certas imunidades: estudantes, políticos, advogados, jornalistas, intelectuais, etc.”. Oliveira ressalta que “O regime de Vargas bateu à esquerda e à direita”, isto é, na Aliança Nacional Libertadora e na Ação Integralista Brasileira. Entre as duas ditaduras, a tortura, como antes desses regimes, ficou com a clientela de sempre: pobres e pretos. De resto, são realmente os pobres que, em qualquer lugar do mundo, ocupam o triste lugar dos “torturáveis”. Só por razões políticas, a tortura sai, por assim dizer, da pobreza para os segmentos de classe média e classe alta, “[…] normalmente protegidos por suas imunidades sociais. Assim foi no Brasil de Médici, no Chile de Pinochet, na Argentina de Videla, na União Soviética de Stálin, na Argélia francesa”.

A tortura, prossegue Oliveira, “[…] é um fenômeno assíduo na história da humanidade. Cristo morreu sob tortura […]”. Podemos dizer, repetindo, com nossas palavras, o próprio ensaísta: a tortura por longos séculos foi um espetáculo e não tinha pudor de mostrar sua carranca. Somente após o advento do século XVIII e do Iluminismo, ela começa a sair de cena e passa a viver na escuridão dos porões. Envergonhada no mundo ocidental, ainda resiliente no mundo oriental, é sobretudo “[…] do ponto de vista moral que a tortura pode ser condenada”, como escreveu Edgar Morin, citado por Oliveira. Como quer que seja, a boa notícia é essa “recente” inibição da tortura. Não por acaso, os que a praticaram ou os que a justificam desejam o silêncio dos mortos ou simplesmente fingem que são indiferentes, quando, na verdade, bem sentem o incômodo fantasma que os persegue. Como aponta Oliveira, “[…] existe efetivamente, como um fato social constatável, o sentimento mais ou menos generalizado de que a tortura é ‘res periculosa’, não apenas técnica, mas também moralmente”. É esse sentimento que é preciso difundir cada vez mais numa sociedade que se queira minimamente digna e democrática.

Outra boa notícia é aquela que se tornou tema do livro “Os anjos bons da nossa natureza”, lançado há vinte anos pelo cientista cognitivo Steven Pinker: a violência vem diminuindo no mundo, não obstante as impressões em contrário. De fato, sem otimismos cândidos, o processo civilizatório, embora sofra os percalços que se conhece, avança e, nesse avanço, amplia direitos, promove a empatia, recria o humanismo. É por isso, convenhamos, que a tortura e os torturadores buscam com avidez a camuflagem e o esquecimento: a rigor, estão ilhados nesse processo civilizatório, e os solenes tapetes vermelhos apenas acobertam o pó dos horrores e da crueldade.