Há bastante tempo, nós, aprendizes da teoria marxista, talvez por interpretação simplória ou enviesada, acreditávamos numa espécie de “historiosofia”, isto é, numa “sabedoria” da História. Segundo ela, a civilização evoluía independentemente das ações humanas individuais, que apenas podiam apressar ou retardar o processo. Assim sendo, do modo como tínhamos passado do comunismo primitivo para o escravismo, depois para a servidão feudal, e enfim para o capitalismo, chegaríamos à utopia da sociedade sem classes, socialista, em que cessaria a “exploração do homem pelo homem”. O papel do indivíduo na formação da História era, pois, minimizado.
No entanto, a própria pessoa de Karl Marx e sua obra intelectual já demonstram a estreiteza de tal concepção. E antes dele, quantos indivíduos notórios, com suas vidas exemplares, moldaram a nossa civilização? Remotamente, o grego Péricles, que chegou a dar nome ao século em que viveu (5º AC), depois Cristo, Maomé, Lutero, Calvino, Galileu, Darwin, Colombo… A lista é numerosa.
Mas há casos em que simples atitudes, sem remissão às vidas, exemplares ou não, dos seus autores, tiveram efeitos profundos sobre o destino da humanidade. E é a tais casos que desejo me referir, convidando à reflexão meus poucos leitores.
Nos primórdios da II Grande Guerra, após o estrondoso fracasso da política de conciliação com o Nazismo de Neville Chamberlain, o velho Churchill decidiu pelo confronto, vencendo a vacilação do Gabinete de Guerra, composto por dois conservadores – o próprio Chamberlain e Lord Hallifax (que Churchill chamava de “holly fox”) e dois trabalhistas inexperientes). E naquele momento, a Inglaterra estava sozinha contra o poderio alemão. Mas acabou vencendo a luta e salvando a democracia, em escala mundial.
Antes da ocupação total da França, Churchill lá esteve, exortando o governo francês a resistir. Mas o velho marechal Pétain não estava mais para isso, apesar da postura combativa do general Charles de Gaulle. E este, vendo que nada poderia fazer internamente, e em combinação com Churchill, fugiu para a Inglaterra. E lá comandou os soldados franceses que se haviam retirado com as tropas aliadas em Dunquerque, e organizou a resistência, em território francês, dos “maquis”. Mais um gesto heroico, fautor da História.
Muitos anos depois, na Espanha, restabelecida a democracia com a morte de Franco, um grupo de militares invadiu o Congresso, dando rajadas de metralhadoras para o teto, aos gritos de “Al suelo”! Todos os parlamentares se abaixaram. Todos menos um: Adolfo Suárez. E enquanto os milicos se assanhavam lá fora, contando com a adesão do rei, Juan Carlos vestiu sua farda militar de comandante supremo das Forças Armadas, e foi para a televisão, para condenar a tentativa de golpe e conclamar a todos pela preservação da nova ordem democrática estabelecida. Dois gestos emblemáticos, que se bastam, independentemente do desempenho posterior dos seus autores.
Na ainda União Soviética, em pleno curso da “perestroika” de Gorbatchov, houve um movimento de rebeldia em uma das suas repúblicas, num momento de ausência do presidente. E Bóris Yeltsin, um político mais conhecido por suas bebedeiras, foi para a rua e conclamou o povo a manter as conquistas do processo de restruturação da sociedade russa. Um lampejo de lucidez que o carimbou para a posteridade.
Em nossa terra, tivemos, nessa linha de conduta, o “Dia do Fico”, de D. Pedro I, seguido pelo “Grito do Ipiranga”, e a Abolição, ainda que bisonha, da Princesa Isabel. Mas nada que se compare à grandeza do gesto do capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o “Sérgio Macaco”. Inconformado com a ordem do brigadeiro João Paulo Burnier, de usar em ações terroristas o PARASAR, grupo de elite da Aeronáutica criado pelo respeitável comandante Eduardo Gomes apenas para ações de salvamento, recusou-se a cumpri-la. E o fez cara a cara com o superior fascista, no mesmo tom de voz, ao lado dos seus companheiros, todos cercados por outros militares armados, em clara atitude de intimidação.
Apesar do inquérito policial-militar que concluiu em seu favor, Sérgio Macaco foi expulso da Aeronáutica, e sobreviveu penosamente por vários anos, até que, com o fim da Ditadura Militar, foi reabilitado. Mas morreu antes que seu gesto heroico fosse publicamente reconhecido, e seus direitos usurpados, novamente concedidos na plenitude. Os planos do brigadeiro louco envolviam a explosão do gasoduto e da represa de água da cidade do Rio de Janeiro, a ser atribuída aos comunistas, provocando uma revolta popular que levaria à morte milhares de pessoas inocentes, como aconteceu em Jacarta, na Indonésia.
E chegamos, enfim, ao nosso caso mais recente, bem sutil, poderíamos até dizer, mas de nímia dimensão política: a recusa de dois militares de alta patente, o General Freire Gomes e o Brigadeiro Baptista Júnior, em aderir ao Golpe de Estado articulado por um grupo numeroso dos seus companheiros de farda, para depor o presidente da república, matar um ministro do STF e fechar o Congresso. Tudo isso, por surpreendente que pareça, exaustivamente provado em documentos, gravações, vídeos, depoimentos, delações premiadas.
É difícil imaginar o que resultaria se o Golpe fosse confirmado. Com a extinção dos três poderes da República, estaríamos numa situação ainda pior do que em 1964, quando ao menos nos restou um Executivo submisso, um Legislativo mutilado e uma Justiça enfraquecida. Desta vez teríamos a mais sombria ditadura já vivida no país, sem limites nem peias.
Podemos, portanto, dizer que os nomes destes nobres e dignos militares devem brilhar em nossa memória, como – na feliz expressão de Elbert Hubbard no conhecido texto “Mensagem a Garcia” – o planeta Marte em seu periélio. Merecem ser plenamente reconhecidos, louvados, condecorados. Não devemos deixar que aconteça com eles a “justiça injusta” – porque tardia, na expressão de Rui Barbosa – cometida contra o capitão Sérgio Macaco. Eles também fizeram História.
Muito bom, mestre Clemente!
Ditadura nunca mais!
Abraço