Right, left, right, wrong Painting by Paul Klonowski

Right, left, right, wrong Painting by Paul Klonowski

Há um incômodo político notório das pessoas que se dizem de esquerda, com a vitória do Trump nos EEUU. Ela vem corroborar um possível avanço das forças de direita, particularmente da extrema-direita, e um recuo no campo dos direitos humanos e da proteção ambiental, apanágios da esquerda. 

Os atos assinados por Trump no segunda-feira, dia 20, provocaram um mau estar naqueles que prezam pela democracia, conservação ambiental e o respeito aos diretos humanos. Atos que começam pelo perdão aos invasores do capitólio em 6 de janeiro de 2021, que desejavam anular o resultado eleitoral, seguem pela revogação de decretos referentes à equidade racial, discriminação sexual e de gênero (define o sexo como classificação biológica imutável) e políticas de migração. Neste campo, suspende por 90 dias o Programa de admissão de refugiados e a entrada de migrantes pela fronteira sul, aumenta o rigor do controle migratório e as penas de deportação, declara nulo a cidadania americana aos que nascem em solo americano de migrantes ilegais. Abre as porteiras para a exploração desenfreada de recursos naturais, particularmente de combustíveis fósseis revogando restrições de sua exploração, inclusive no Alasca. Anuncia restrições à produção de energia eólica, ou seja, estimula o modelo econômico intensivo em carbono, principal responsável pelas atuais mudanças climáticas. Retira, pela segunda vez, o País do acordo de Paris de 2015. Além de mudanças diversas de controle administrativo e da função pública, nos moldes do neoliberalismo de reduzir a presença do estado na economia. 

Não vou aqui comentar o conjunto desses atos assinados por Trump, mas apenas sinalizar a lógica dos atos,  o seu fio condutor, que parece se assentar na ideologia de que os interesses norte-americanos vêm em primeiro lugar mesmo a custa do planeta e dos interesses legítimos de outras pessoas e países. É preciso que o mundo se curve aos interesses norte-americanos, como na época do imperialismo no final do século XIX e começo do XX o fazia a América Latina. Trata-se de uma tentativa de retornar aos velhos valores e antigo poder. É uma tentativa de ressureição do poder americano ameaçado pela concorrência da China, dos BRICS e do crescimento econômico dos países em desenvolvimento.

Por séculos, formou-se no Ocidente um pensamento de que os humanos são iguais perante a lei, que todos os humanos são revestidos de direito, base do conceito de cidadania, e que os “esquecidos da sorte” devem ser objetos de compaixão e solidariedade, pessoal e estatal. A igualdade era um valor para a maior parte dos ocidentais, que foi aos poucos se disseminando noutras partes do mundo. A vertente política da extrema-direita atual está destruindo este legado.

A propositura de Bobbio1, identificando a direita com a defesa da liberdade e a esquerda com a defesa da igualdade, nunca foi considerada em sua plenitude. A direita sempre considerou importante restringir o crescimento da desigualdade. Com a derrota do comunismo representado pela URSS, encerramento da velha guerra fria e ressurgimento da extrema-direita, liberdade e igualdade ganharam uma nova conotação. 

Nesse sentido, na população americana, há tempo, e aos poucos na brasileira, o valor da igualdade é substituído pelo valor da desigualdade produzida pelo mérito. Para os que assim pensam, a desigualdade é o resultado do trabalho dos mais dedicados, mais inteligentes e mais competentes, que devem ser estimulados. E por isso, ela ganha foros de valor.  Aos mais fracos não se deve oferecer a mão para sobreviverem, mas sim gritos e ordens  para que se levantem, lutem e tornem-se fortes. Não importa se, entretanto, muitos morrerão. 

Por sua vez, a extrema-direita redefine a liberdade, agora entendida como a livre expressão individual sem tomar em conta quaisquer interesses da coletividade. E isso, com tal força, que mesmo setores sociais à direita, particularmente os conservadores democráticos, sentem-se ameaçados.

Simultaneamente, as pessoas que defendem a proteção ambiental, os direitos humanos e a tolerância com as diferenças ficam assustadas, e se sentem impotentes. Sobretudo porque as propostas das esquerdas se desgastam e dialogam cada vez menos com as necessidades e o imaginário da população. As pessoas de esquerda, aparentemente, não entendem as mudanças dos tempos que ocorrem com muita velocidade.  Alguns intelectuais, inclusive, afirmam que a esquerda não existe mais, falam de exquerda. Exagero a parte, há um vazio político que se cria com a inércia, a fragilidade e a incongruência das narrativas das forças de esquerda. Pelo menos de sua maior parte.

Guardadas as devidas proporções tomemos os exemplos de Trump e Lula. O primeiro é o líder da extrema-direita no Norte e o segundo o maior líder das esquerdas, no Sul. E talvez no mundo.

Assim, enquanto a extrema-direita cresce com Trump, as esquerdas acumulam erros, atrás de erros. Grande parte de seus intelectuais não compreendem o que se passa. Defendem ditaduras e repetem velhas narrativas que ninguém mais escuta. Produzem análises com antigos conceitos que não dão mais conta do que se passa. Perdem seus militantes, perdem seus aliados e não ganham os indecisos, nem novos adeptos. 

O governo Lula é uma expressão desse esmorecimento das esquerdas. Seu governo não tem entregas substantivas. O País vive uma crise de dengue e não tem uma orientação visível para a população. A vacinação cai em toda parte, em um País que já foi referência mundial. A cultura, que já teve uma força extraordinária com Gilberto Gil e Juca Ferreira, hoje não mostra a que veio. Até o IBGE, tão discreto, cria problemas de imagem para o governo. E o povo não sabe o que o governo faz, quais seus planos. Com exceção de Hadad, Tebet e Marina o ministério é um cemitério de boas intenções: um “silêncio cacofônico”. 

Com intelectuais de segunda categoria, as esquerdas se deixam prender pela ineficiência, por velhos programas assistencialistas, pelo identitarismo importado dos EEUU e pela incompreensão das novas linguagens políticas. Como seus políticos compreendem mal o que se passa no mundo, decidem mal.  

O exemplo mais recente foi a anulação do decreto sobre o PIX. Recuando, o governo demonstrou-se absolutamente despreparado, não previu as reações, não se antecipou em uma campanha para a população e jogou a toalha, quando tinha condições de ganhar. Com o recuo, o governo mostrou que a oposição tinha razão, ou seja, que ele tinha más intenções com o decreto. Não tendo feito o que devia antes, era preferível, aparentemente, comprar a batalha da comunicação nas redes e ganhá-la com o tempo a seu favor, demonstrando que a oposição estava errada, que não existia impostos, nem intenção de exercer controle sobre os pobres. O governo foi derrotada sem lutar. Agora, como provar que ele não tinha intenção de extorquir os pobres quando 67% dos brasileiros acreditam que sim?

O avanço da extrema-direita e o esmaecimento das esquerdas têm exemplos brilhantes, nesses dias, nas ações de Trump e Lula. Governar é aparecer, se mostrar. Trump se mostra – truculento, estúpido, grosseiro, imoral – mas se mostra, causa impacto, cria notícias e seus adeptos não o veem desta maneira. Para eles, Trump é o exemplo de um homem decidido, corajoso e que coloca os interesses nacionais e de seus cidadãos acima de tudo, inclusive, estupidamente, sobre a vida no Planeta. Lula se encolhe, deixa se levar por uma assessoria medíocre, atabalhoada, com algumas personalidades encantadas por estarem no poder (falso poder). Lula não se mostrou nos últimos dias e, quando o fez, foi de forma desajeitada retirando o decreto do PIX. Errar em política não é difícil, tendo em vista a complexidade da arena, com suas inúmeras variáveis, atores e atrizes. Mas alguns erros custam caro. Esse vai pesar.

O governo mudou a direção da comunicação com a sociedade, que promete milagres. Tomara que esteja errado, mas temo que o problema do governo Lula não se resume à comunicação, é mais profundo. E todos os democratas de esquerda são chamados a agir. Será muito ruim para o País o retorno de alguém da extrema-direita, como demonstram as ruínas que nos deixou o governo passado. E se tiver um próximo, com a experiência acumulada, será muito pior. Como deverá ocorrer no caso de Trump, agora experiente, com um ministério identificado ideologicamente com ele, maioria nas duas casas do Congresso e apoio das grandes Big techs, além de ter sido eleito com a maioria dos votos, inclusive de latinos.  

Aparentemente, o mundo está caminhando para a direita. E como indivíduos, talvez não possamos mudar a trajetória. Mas temos o dever de resistir às restrições aos direitos humanos e à crescente degradação da natureza, e isso com inteligência. Creio que o primeiro passo neste sentido é entender as mudanças, as tendências do momento. E, politicamente, discernir a extrema-direita autoritária da direita democrata. Como nos dizia o velho Arraes, para vencer a direita é preciso dividi-la. Hoje, para vencer a extrema-direita é preciso ganhar os setores democratas da sociedade, particularmente os de direita. 

 

1 Noberto Bobbio. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora Unesp, 2012.