O etnocentrismo da fé, ao que parece, é um dos mais inabaláveis da agitada sofrida história humana. O monoteísmo trouxe benefícios revolucionários, conforme lembrou Arnold Toynbee, mas também problemas. Um deus único, ou o único Deus, foi apropriado por diversos povos como um “único” exclusivo, e daí a crença pouco saudável de que cada um é o povo escolhido. Deus virou um argumento de autoridade, com cada grupo puxando-O para si como uma brasa para a sardinha, o que não resiste, claro, a uma visão mais racional. Talvez Wittgenstein (1889–1951) se perguntasse o que significa a palavra “Deus” no jogo da linguagem, ou seja, no seu uso. Para o filósofo, talvez o maior do século 20, se o mundo tem um sentido, esse sentido está fora do mundo. Trago essa observação porque, para bilhões de pessoas, não sem razão, o sentido da existência está em Deus. Sobre isso, Guimarães Rosa mandou bem: “Se não tem Deus, a vida é burra”.
Como quer que seja, Deus, como argumento de autoridade, é naturalmente politizado. Os fascistas O assumem explicitamente com o famoso lema “Deus, pátria e família”. Inúmeros políticos das mais variadas colorações e célebres personagens históricos, assim como diversas instituições, não hesitam em falar de Deus, e em nome d’Ele, com uma intimidade estarrecedora. Aliás, o presidente Lula, de uns tempos para cá, provavelmente por conta da força do eleitorado evangélico, vem falando em Deus com uma convicção e um fervor nunca antes vistos na sua trajetória. Já Bolsonaro fala sempre em “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, o que talvez provoque um certo ciúme entre ambos: Deus e a pátria…
Os muçulmanos não só falam em Deus com ardente devoção como, em suas teocracias, governam em nome d’Ele. Foi com esse tema e por causa dele que, em 2013, o escritor franco-argelino Boualem Sansal (1949), que tem um romance traduzido no Brasil, publicou, pela Gallimard, o ensaio “Governar em nome de Alá: islamização e sede de poder no mundo árabe” (ainda sem tradução no Brasil). Como se sabe, desde novembro próximo passado, Sansal, por sua discordância política, foi preso pelo regime argelino, e, até agora, têm sido em vão as tentativas do governo francês e de vários intelectuais para soltá-lo.
Por meio do título e das duas epígrafes do seu livro, Sansal logo diz a que veio. De Karl Marx, fixa: “A crítica da religião é a primeira condição de toda crítica”. E de Nietzche estampa: “O pior inimigo da verdade não é a mentira, mas a convicção”. Mais claro, impossível. Sem ser filósofo, historiador ou jornalista, como faz questão de ressaltar, ele apresenta seu trabalho como uma “reflexão” e um “testemunho” face a uma Argélia que, desde o seu início como país independente, em 1962, confrontou-se com o islamismo, “fenômeno até então por lá desconhecido”. Sansal recorda como foi terrível o confronto entre os muçulmanos e o poder argelino no período de 1991 a 2006: 200 mil mortos, economia devastada, feridas morais e sociais irreparáveis e dizimada elite moderna do país. Mostra-nos como o islamismo radical, travestido de moderado, continua dando as cartas no jogo político-cultural argelino, em cumplicidade com diversas correntes islâmicas internacionais.
Com uma organização quase didática e um texto muito claro, o libelo de Sansal esquadrinha o islamismo, suas ideias e correntes, apontando-nos como ele foi dominando seu país e crescendo no mundo, até por conta da sua proibição do controle da natalidade!… O escritor — e aí parece estar, senão o núcleo duro de seu texto, mas a força de sua inspiração — nos apresenta o Islã como inteiramente avesso ao espírito crítico europeu e ocidental, não suportando quaisquer senões, “mesmo quando há as palavras mais correntes e as melhores intenções”. Agindo autoritária e totalitariamente, o islamismo, em seu “projeto político-religioso vai se concretizando em vários países árabes e começa a se enraizar além das fronteiras de terras muçulmanas”.
Uma das mais perplexas interrogações do escritor é justamente sobre o silêncio dos grandes intelectuais muçulmanos diante do extremismo de seus irmãos de fé. Não é só de perplexidade que se trata, mas de profunda frustração. Diante de um islamismo que “perdeu a dimensão espiritual e moral” e se transformou em “assassino fascista”, como agir? E, do ponto de vista político, como conciliar com a democracia esse fanatismo religioso e ideológico? Como construir uma convivência pacífica? Enfim, quem somos nós na fila do pão se se governa em nome de Deus?
Torçamos para que, logo no início deste ano novo, Boualem Sansal seja solto e livremente possa continuar a escrever seus livros e expressar suas opiniões. Em nome de Deus, também temos o direito de pedir sua libertação. Ou, pelo menos, em nome dos nossos combalidos e trêmulos Direitos Humanos.
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