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Mercado financeiro
O sistema capitalista de produção criou dois mundos quase dissociados: de um lado, o da produção e consumo de bens físicos — o mundo real das mercadorias; de outro, o mundo dos papéis e moedas, o financeiro. Deveriam ser duas faces da mesma moeda, mas cada vez mais se dissociam, dificultando as conexões claras entre eles.
O mundo do capital financeiro originou uma nova “classe social”, com sua própria lógica, valores e expectativas, distante do mundo palpável dos bens reais e dos consumidores — os rentistas. São pessoas que vivem de aplicações financeiras ou rendas monetárias, muitas vezes sem contribuir efetivamente para o mundo produtivo.
É crucial entender como pensam os rentistas. Seu principal objetivo é, sem dúvida, a lucratividade de seus papéis, os juros que auferem e a valorização de seu capital monetário. Implementam estratégias para se posicionar melhor no mercado de papéis, hoje dominado pelos bytes eletrônicos, que se multiplicam.
Juros e câmbio são os principais vetores que definem a lucratividade tão almejada. O prêmio pago a quem investe, a quem arrisca seu capital em outras mãos, a quem concede o crédito que possibilita a ampliação da produção antes que se tenham os recursos economizados pelo investidor produtivo, é fundamental. Num mundo globalizado, o câmbio torna-se crucial como regulador das transações internacionais.
Este mercado é complexo e abrange quase todos, mesmo aqueles que não interferem em seus rumos. A maioria, incluindo micro, pequenos e médios investidores, apenas observa, com pouca ou nenhuma influência sobre as direções tomadas. Parecem-se com donos de bicicletas que fazem entregas e se consideram empreendedores.
Grandes investidores, bancos e corretoras de grande porte são agentes fundamentais. Suas iniciativas e escolhas definem os caminhos do mercado, influenciando as principais taxas, os juros e o câmbio.
Um ator crucial nesse processo é o Estado, especialmente em países em desenvolvimento, que precisa de recursos para viabilizar seus projetos produtivos e sociais. Recorre ao mercado financeiro para captar os recursos necessários.
Para os grandes investidores, que efetivamente possuem recursos para emprestar, a lógica de disponibilizar passa pelo risco assumido. Quanto maior o risco de não retorno ou de atraso significativo, maior a taxa exigida, menor o período de retorno aceitável.
Este embate se intensifica entre grandes investidores, com suas taxas por vezes estratosféricas, e o Estado, necessitado urgentemente de recursos para financiar a expansão econômica e melhorar a justiça social.
Com este panorama em mente, é essencial revisitar o caso brasileiro, de nosso particular interesse. Após quase oito anos de estagnação econômica com impactos significativos no crescimento e melhoria das condições de vida, era necessário mobilizar recursos para a retomada. Simultaneamente, foram estabelecidas condições de ajuste fiscal draconianas, quase incompatíveis com a necessidade de reestruturação e crescimento econômico.
Ainda assim, conseguimos indicadores razoáveis, com uma boa taxa de crescimento, inflação controlada e endividamento governamental pouco significativo.
Consultando economistas do mercado financeiro, percebe-se um reconhecimento do quadro favorável no curto prazo, mas há uma fixação na “possível” dívida de longo prazo. Uma declaração em um artigo elucidou essa posição dos rentistas:
“Quando o governo gasta mais do que pode e entra em uma dinâmica explosiva da dívida pública, ou quando o custo real de carregamento da dívida é maior que o crescimento econômico do país e o superávit primário, então os financiadores dessa dívida pública (os rentistas) cobram um rendimento (juro) maior, dado um risco fiscal maior.”
Essa é a lógica que os norteia. No entanto, levam ao limite tal pensamento, exigindo do Banco Central taxas de juros incomparáveis mundialmente. Segunda maior do mundo, alegam impactos inflacionários de curto prazo e uma demanda excessivamente aquecida, que não se reflete no nível de ociosidade do setor produtivo.
Esse cenário aumenta a lucratividade dos papéis financeiros, desvinculando-os da produtividade efetiva, que se observa em melhoria. Exige-se o inimaginável para um financiamento de longo prazo, desestruturando as finanças públicas.
O aumento das taxas de juros eleva significativamente a dívida pública. Um trilhão de reais foi pago em 2024, o maior gasto do Estado em qualquer rubrica, sendo os juros da dívida.
Há, evidentemente, um impacto inflacionário significativo. Os preços aumentam substancialmente com o custo elevado do dinheiro e com a taxa de câmbio superelevada.
Mas não só isso. O crédito torna-se mais caro, não apenas para consumo, mas crucialmente para investimento. Assim, o feitiço pode virar contra o feiticeiro, aumentando a inflação e reduzindo significativamente o nível de retomada da economia nacional.
Se o embate é entre o grande capital e o governo atual, algumas medidas parecem possíveis para diminuir a pressão dos rentistas. E focar nelas parece importante.
- Reconhecer que o mercado de capitais não é fechado e pode haver espaços pouco explorados como força contrária à pressão atual é crucial. Por exemplo, recorrer mais enfaticamente a empréstimos de países parceiros como a China, que possui grandes reservas em divisas e já se mostrou disposta a ser parceira no processo acelerado de investimentos produtivos e infraestrutura do país, ofereceria dinheiro a custos bem mais baixos, diminuindo a pressão do mercado de capitais nacional.
- Na mesma direção, o Banco dos BRICS, também conhecido como Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), é uma instituição financeira multilateral disponível para auxiliar o país, fora da esfera de influência norte-americana.
- Restringir movimentos especulativos atuais que dificultam a dinâmica da economia real seria bem-vindo. Medidas previamente utilizadas de controle de saída de capitais e de restrição a investimentos financeiros puramente especulativos seriam muito úteis.
- Fortalecer moedas alternativas ao dólar no comércio internacional para uma maior estabilidade do câmbio e diminuir a excessiva dependência da moeda americana é necessário para a maior estabilidade de nossa economia.
O momento atual apresenta forças opostas que podem fortalecer movimentos como o sugerido.
Por um lado, a ascensão de Trump na América do Norte representa uma força visceralmente contrária a essa mudança de rumos. Por outro, a nova diretoria do Banco Central brasileiro abre a perspectiva de uma discussão mais flexível e adequada das políticas fiscais e cambiais do país. Esperamos que haja espaço para avanços.
Abraham, seus artigos são sempre bem fundamentados e bastante instigantes, normalmente me desafiando a refletir, mas também a arengar quando tenho alguma divergência. Em relação a este artigo tenho dois questionamentos: primeiro a sua crítica do chamado rentismo, entendendo que existiria uma “classe de rentistas”; e segundo sobre o tal “pagamento” da dívida.
Falar de uma “classe social” de rentistas “pessoas que vivem de aplicações financeiras ou rendas monetárias, muitas vezes sem contribuir efetivamente para o mundo produtivo” me parece uma grande imprecisão (mesmo com aspas). Existem brasileiros que vivem só de rendas financeiras, mas deve ser uma minoria, a não ser que considere os 40 milhões de aposentados e pensionistas (70% dos quais recebem salário-mínimo) e os 54 milhões de beneficiários da Bolsa Família. Mesmo sem um número preciso, desconfio que o predominante na sociedade brasileira são dezenas de milhões de pessoas com alguma poupança, e nem precisa muito, aplicando parte dela nos múltiplos ativos financeiros e nos fundos oferecidos pelo sistema bancário (ações, fundos de commodities, imobiliários, títulos da dívida pública, etc). A maioria tem outra fonte de renda, trabalho ou dividendos de empresas, e não vive só do retorno da aplicação da poupança. Isso vale para os bilionários que, na verdade, são empresários e devem investir em ações. Por outro lado, considerando o uso das suas poupanças, os tais rentistas têm um papel importante no financiando dos investimentos das empresas (ações e outros fundos) e da dívida pública.
Claro que cada um desses poupadores, ricos ou pobres, espera receber o maior e mais seguro retorno das suas poupanças. Natural. A pergunta é outra: por que o governo está disposto a assumir mais 14% de juros para rolar as dívidas de curto prazo? Desculpe, mas, nesta relação não se trata de “pressão dos rentistas” que obrigam o governo a assumir juros mais altos, se trata de expectativas de retorno que não confiam que vão alcançá-las e preferem aplicar em outros títulos, como dólar. Claro que é um jogo de negociação dura entre que tem poupança e quer emprestar e quem precisa tomar o empréstimo para financiar seu endividamento e, que, portanto, tem que mostrar capacidade de pagamento. Você fala de grandes investidores, mas é importante lembrar, como você mesmo diz, que os bancos e corretoras são intermediários dos poupadores e, repito, não só dos milionários, e acumulam grande volume de recursos para negociação dos ativos financeiros se obrigando a oferecer os melhores resultados aos poupadores que neles confiam. Na verdade, quase metade dos portadores de títulos da dívida pública são Fundos de Previdência e Fundos de Investimento, que captam recursos entre as dezenas de milhões de poupadores.
Outra arenga é sobre o pagamento da dívida. Considero incorreta a sua afirmação de que “um trilhão de reais foi pago em 2024” de dívida pública. Falar de pagamento da dívida neste caso, provoca uma grande confusão no leitor que não esteja familiarizado com as finanças públicas. Confusão que se reflete numa frase repetida muitas vezes: “é um absurdo que o governo pague um trilhão de reais aos rentistas e não tenha dinheiro para saúde e educação”. Ocorre que este valor (pouco mais de um trilhão de reais) não foi resgatado (ou “pago”, para usar a sua expressão) e por uma razão muito simples: o governo não tinha dinheiro, já que não alcançou superávit primário. Como não pode resgatar, o governo refinancia a parcela da dívida vincendo que, portanto, vai aumentar o estoque da dívida, jogando para prazos mais confortáveis, mas assumindo taxas de juros e riscos maiores (é assim que aparece no orçamento da União, refinanciamento da dívida que vai para 1,56 trilhões em 2025). E não se trata, do meu ponto de vista, de nenhuma perversão de uma classe de rentistas.
Vou começar pelo fim do artigo. Espero que Galípolo, que trabalhou num grande banco, entenda como funciona a economia (capitalista) e qual o papel dos juros no regime de metas de inflação. Espero que ele não pretenda “enfrentar rentismo” com base nessa teoria do crédito a la Hilferding simplista que atribui a alta da curva de juros à ganância dos credores, o que é tão simples quanto errado. O problema da turma que acha que se pode baixar juros na marra, sem responsabilidade fiscal, em geral é que esquecem, ou querem esquecer, que antes dos “quase 8 anos de estagnação” mencionados pelo articulista, o que tivemos foi a estagflação e recessão do trio Dilma/Mantega/Tombini de 2014-2016. O articulista, fora “enfrentar o rentismo” quase inexistente entre cidadãos brasileiros, quer fugir dos “rentistas” no Brasil tomando empréstimos na China e controlando o câmbio. E voltando aos juros ainda mais subsidiados nos bancos estatais. Mais estapafúrdio ainda estou para ver.