Hjalmar Schacht

Hjalmar Schacht

Revendo trecho da pesquisa que ensejou meu livro O Estado do Líder (2024), encontrei diversas referências sobre a ambígua interação entre liderança carismática e autoridades de órgãos estatais. Dentre essas, ressalto a dúbia relação entre um político demagogo e um renomado economista do primeiro escalão do seu governo, em circunstâncias marcadas por incertezas e imprevisibilidades. Especificamente, descrevo a trajetória de Hjalmar Schacht na Alemanha hitlerista por refletir com nitidez a incontornável tensão nesse tipo de relacionamento. 

Após quatro anos de êxitos econômicos do governo nacional-socialista, iniciado em 1933, a Alemanha mergulha em uma crise no câmbio, em meio ao desequilíbrio fiscal, à escassez de alimentos, e com a inflação saindo do controle. Por conta disso, o conceituado financista H. Schacht, presidente do Banco Central (1933-39) e ministro da Economia (1934-37), sentencia que o país não pode bancar, simultaneamente, “armas e manteiga”. Essa avaliação crítica evidenciou desacordos entre as diretrizes econômicas e a agenda do Plano Quadrienal de Rearmamento, sob a coordenação de H. Goering, ministro da Aviação e tido como a segunda maior autoridade na hierarquia governamental, apenas abaixo do Führer (Adolf Hitler). Cabia a Goering a responsabilidade de coordenar uma imensa estrutura ad hoc voltada para a produção acelerada de material bélico e de construções militares. Os contínuos e vultosos gastos requeridos para esse propósito provocavam embates frequentes e negociações intermináveis entre as equipes desses dois ministros. A consequência dessa inconciliável disputa foi a decisão de Hitler em destituir o banqueiro do ministério da Economia. 

Em janeiro de 1938, o jornalista W. Funk, ex-chefe do comitê de política econômica do partido nacional-socialista, é nomeado para o ministério. Mas Schacht permanece como presidente do Banco Central. No final desse ano a economia alemã registra uma despesa com rearmamento da ordem de um terço do orçamento e um déficit fiscal acendendo de maneira assustadora. Então, mais uma vez, Schacht expressa a sua contrariedade com o desequilíbrio das contas públicas, enviando uma enérgica carta ao Führer em que condena as desenfreadas despesas governamentais, o que poderia provocar uma explosão inflacionária. Diante dessas ponderações críticas, Hitler resolve designar o ministro da Economia Funk para assumir cumulativamente a presidência do Banco Central. Entretanto, devido à respeitabilidade que Schacht desfrutava nos meios financeiros internacionais, era importante a sua continuidade no gabinete ministerial, a despeito de sua posição reticente em relação ao nazismo. Ele não recusa permanecer no governo, na condição de ministro sem pasta.

Importa lembrar que, nos anos vinte e antes da hegemonia do partido nazista, Schacht havia participado de uma exitosa e criativa reforma monetária que, em 1923, levou a Alemanha a conviver com duas moedas – ideia essa que inspirou parcialmente a concepção do nosso bem-sucedido Plano Real.  O controle da hiperinflação alemã foi decisivo para o aumento da credibilidade e do prestígio de Schacht, culminando com sua nomeação naquele ano à presidência do Banco Central, o que lhe propiciou condições para negociar créditos internacionais e investimentos estrangeiros para a Alemanha. O período de 1925-28 é de relativa prosperidade para o país, que passa por um distensionamento político e no âmbito internacional vem a integrar a Liga das Nações. Por discordar do rumo das negociações sobre o pagamento das dívidas externas, em 1930, Schacht abdica do cargo de presidente do Banco. Em meados do ano seguinte a crise econômica mundial atinge profundamente a Alemanha. Instituições financeiras e inúmeras empresas pedem concordata ou entram em falência, e há o colapso de reservas em moeda estrangeira no país. O cenário econômico, em 1932, é devastador: a produção nacional tem vertiginosa queda, as dívidas interna e externa ficam fora de controle, o desemprego dispara e o sistema bancário perde liquidez. Na esfera política, o partido nazista torna-se a maior força do parlamento. No ano seguinte, é inevitável que Hitler seja alçado ao cargo de primeiro-ministro. 

Ele governaria por seis anos, com paz na Europa. A partir de 1939, porém, o regime hitlerista passa a articular o esforço da guerra de conquistas territoriais com a obtenção de novos recursos e a geração de receitas para diminuir o déficit orçamentário. Nesse sentido, quadros técnicos dos ministérios do setor econômico-financeiro e do Banco Central precisavam decidir conjuntamente sobre rotinas e procedimentos para calcular taxas diversas, efetivar cobranças e recolher tributos nos países subjugados, além de elaborar certidões de créditos de guerra e operar políticas de câmbio, entre outras tarefas. Algumas entidades passaram por uma reestruturação administrativa que incluía o gerenciamento geograficamente descentralizado. Para tanto, o Banco Central designou funcionários para atuar junto aos bancos correspondentes em países ocupados. Com o suporte da estrutura policial e paramilitar, era também procedida a expropriação de bens e o confisco de propriedades das minorias judaicas nos territórios desses países. Em um segundo momento foi imposto o trabalho escravo e realizada pilhagens de populações inteiras, culminando com as execuções massivas nos campos de extermínio. O Terceiro Reich achava ter encontrado na própria guerra um meio para financiá-la. Isto é, a guerra alimentando a guerra vinha a ser um princípio relevante para o expansionismo germânico. 

No final de janeiro de 1943, o ministro sem pasta Schacht pede para sair da fragilizada estrutura burocrática profissional do Estado do Führer. Dias depois, em 2 de fevereiro, a máquina de guerra alemã é derrotada pelas forças armadas soviéticas na gigantesca batalha de Stalingrado, marcando o início do irreversível declínio do totalitarismo nazista. Em julho do ano seguinte, Schacht é acusado de ter participado do grupo de conspiradores, na chamada Operação Walkyria, que atentaram contra vida de Hitler por meio da explosão de uma bomba. Foi detido pela Gestapo, três dias após o atentado, e aprisionado em um campo de concentração até ser libertado por tropas americanas no final da guerra. Terminado o conflito europeu, inicia-se o processo de desnazificação da Alemanha e o julgamento das principais autoridades do Reich hitlerista. Schacht está entre os vinte e um réus no Tribunal Internacional de Nuremberg, mas foi um dos quatro julgados inocentes. 

Ao fim e ao cabo, razão e objetividade prevaleceram sobre paixão e fanatismo. Como assinala Max Weber, o domínio carismático é efêmero e, inexoravelmente, cede lugar à duradoura estabilidade da estrutura burocrática. Com efeito, o triunfo da vontade do Führer se fez valer por doze anos, tempo desprezível em termos históricos, não obstante as suas abomináveis consequências. Muito embora tenha ocorrido há dezenas de anos, este caso singular ainda pode suscitar insights para compreender a contraveniente relação entre o voluntarismo de um governante populista e a racionalidade funcional de um dirigente técnico-especializado da burocracia estatal.