Helga Hoffmann

Liberdade? Que credenciais tem alguém que celebrou a tortura a plena voz no Parlamento, que a todo momento repete elogios a um monstro da história de nosso Continente como o Gal. Augusto Pinochet – que credenciais tem alguém que sequer assume a responsabilidade por seus atos, que credenciais tem para usar a palavra liberdade? Declarou que 31 de março é um “grande dia da liberdade”. Liberdade é escolher, e assumir a responsabilidade por sua escolha. A liberdade que o Presidente Bolsonaro disse estar comemorando deve ser aquela que ele acha que tem. Sem responsabilidade. A liberdade, na sociedade, só existe se organizada pela lei. E em 31 de março de 1964 a força ignorou a lei.

Em consequência do golpe de 1964 e o período de 21 anos de ditadura que se seguiu muitos morreram pela liberdade, e não foram apenas os que tiveram a ilusão de que poderiam derrubar a ditadura de armas na mão. Muitos perderam a vida e a liberdade naquela época simplesmente por “delito de opinião”, apenas por criticar o governo. E muitos perderam o emprego, demitidos. Muitos se foram, exilados. É grossa distorção a ideia de que só sofreu o pessoal que defendeu a luta armada. Teve gente demitida e que passou um tempo presa apenas por algo feito no passado que levava à mera presunção de que seriam críticos da ditadura. A esses nem deram tempo para começar a criticar.

Jornalistas e jornais perderam a liberdade apenas por relatarem perseguições. O Estadão não vai esquecer jamais os tempos em que saía com grandes pedaços em branco. Hoje vejo gente que usa a palavra “censura” sem saber muito bem o que é, gente que chama de censura a aplicação de uma regra do contrato de usuários com provedores digitais que veda a divulgação de mensagens que representem perigo à própria vida e à vida alheia. Por exemplo, negar a existência da pandemia do coronavirus. Gente que me acusa de censura quando apago um comentário que é só mentira, mentira que, talvez pela globalização digital, chama-se agora “fake news”. Ora, distorção é mentira, e meias verdades amontoadas não fazem uma verdade, são mentira.

Ainda não sei explicar bem porque se difundiu a ideia de que os que sofreram com a ditadura foram os que em algum momento defenderam uma oposição em armas, oposição armada essa que nunca chegou a ameaçar de fato o regime. Talvez uma maneira de justificar o uso da violência e da tortura pelo governo de então. Talvez porque tivemos no período de janeiro de 2011 a agosto de 2016 uma Presidente da República que, quando jovem estudante em Minas Gerais, participou de um grupo que, se é que não chegou a pegar em armas, defendeu o seu uso para derrubar a ditadura, e para alguns, pelo menos, a coragem e capacidade de organização de Dilma Rousseff nesse grupo a fazia merecedora da chefia do Executivo. O certo é que Dilma Rousseff haver chegado à Presidência deu mais visibilidade a esse segmento da oposição à ditadura, até pela controvérsia sobre sua atuação, pois nunca se saberá se de fato ela pegou em armas.

Por que a ditadura prevaleceu, e como afinal foi derrotada, é uma longa história que deve ser lembrada e estudada. O jornalista e historiador Paulo Markun trabalhou com uma equipe muito variada para fazer uma análise documentada de como foi o início e o fim da ditadura 1964-1985. Seu trabalho, em dois volumes, Brado Retumbante 1 e 2 (“Na Lei ou na Marra 1964-1968” e “Farol Alto sobre as Diretas 1969-1984”) foi publicado pela Editora Saraiva em 2014. Pois hoje, mais ainda, é “boa hora de olhar pelo retrovisor e constatar que a ditadura não acabou apenas em razão da iluminada ação de seus condutores. E que tampouco foi a oposição armada que a derrubou.”

Sim, hoje comemoro a liberdade. Em quarentena (no meu caso a liberdade de ficar em casa) e lavando as mãos com água e sabão. Com um aniversário que merece ser comemorado. Hoje, 31 de março comemoro a liberdade com o poeta das águas. É aniversário de Thiago de Mello. Completa 94 anos, imagino que continua cantando o seu grande rio da Amazônia e a liberdade, e o amor que não existe sem liberdade. Espero e rezo que esteja bem, lá em Barreirinha, à margem das “águas negras de todas as cores do rio Andirá”. Em um de seus poemas até disse: “Valeu a pena. Escrevendo,/caboclo de Barreirinha/fiz cantando a minha parte”. Até cantando de verdade no Teatro Amazonas em Manaus, a voz rouca em dueto com o filho mais novo, Thiago Thiago que é músico.

Deve ser muito difícil a quarentena para ele, um homem de muitos abraços e festeiro. Dureza! Ainda que seja um caboclo que “gosta de conversar com as estrelas,/ouvir as histórias do vento/e de aprender as sílabas da água” (como ele conta em “Só um grão de esperança”). Eu o conheci em 1965, na Editora Civilização Brasileira, quando a editora virou ponto de encontro de alguns que haviam perdido seus empregos e sustento, e Ênio Silveira, o editor, tratava de ajudar desgarrados intelectuais. Na época comecei a traduzir livros para a Civilização Brasileira e depois para a Fundo de Cultura Econômica. Pouco frequentava as aulas de uma Faculdade de Economia no centro do Rio. Ênio Silveira publicou “Messianismo e Conflito Social”, de Maurício Vinhas de Queiroz, em 1966. Esse eu datilografei quase todo, por amor, desempregada que estava, fechado o ISEB, que havia sido cercado por militares dia 1º de abril. Ênio Silveira publicou de Thiago de Mello “Faz escuro mas eu canto” um ano após o golpe, em 1965. O poema que deu o título ao livro, lido agora de ponta a ponta, inteiro (que está no Google), não se encaixa bem no momento atual de muita treva cujo final não se antevê. Mas as estrofes iniciais, esperançosas, correm mundo há meio século: “Faz escuro mas eu canto,/porque a manhã vai chegar.”

Thiago de Mello chegou a ser preso no Brasil, conseguiu sair e partiu para o exílio no Chile, ficou amigo de Neruda, mas de novo teve que sair, dessa vez para não morrer no terror de 1973 em Santiago, foi para a Alemanha, e outros lugares que não sei. Modesto Thiago não é, nem queria ser: para ele o Reno foi apenas “um rio que banhou o meu exílio”.

O poeta das águas, das canoas, das barcaças, do grande rio, dos peixes e até de mares jamais teria imaginado que seriam outras águas, diferentes, que estariam no centro das atenções em 2020: quem tem água para lavar as mãos? Água e sabão. Conseguirá agora fazer poesia com outra água? Pois sempre teve seu olhar também para o cotidiano de quem usa as mãos em seu trabalho, usa as mãos para lavrar a terra, usa as mãos para lavar o rosto, até para agarrar um peixe. Apesar de parecer sempre estar com a cabeça nas nuvens, sei lá se é porque trazem chuva, ou no mundo da lua dos apaixonados, suas palavras também remetem às “pequenas coisas” práticas.

Seu longo poema “A mão”, que amassa o pão, que afaga, que escreve, é comovente e não é porque a última linha diz “A mão de minha Mãe me dando a bênção.“ Lembrei da minha mãe, que graças a deus nunca me deu a bênção, lá em Nova Europa no mato, eu estava ajudando a pôr a roupa no varal que ainda não alcançava, que mais de 6 anos não tinha, e ela explicou: o que limpa é água e sabão, se não tiver sabão é água, e se não houver água o sol desinfeta”. E explicou o que são micróbios. Água era do poço ou da fonte lá embaixo descendo o morro. Só soube muito mais tarde que a luz do sol pode ser limpeza em mais de um sentido. Mas “a manhã que vai chegar”, em 1965, era só esperança de que chegaria a democracia. Levou 20 anos.

A produção de Thiago de Mello é imensa, já não lembro os preferidos que escolhi a pedido dele em 1965, quando preparava uma antologia. Sei que já contei essa história: disse a ele que poesia não era minha prioridade, e que não entendia porque pedia que eu escolhesse naquela papelada toda, que eu não era especialista. Nunca esqueci a resposta, e o sorriso aberto: “Ora, eu podia pedir p’ra minha cozinheira.” Queria apenas a opinião espontânea, puro sentimento. Vagamente recordo que uma das que escolhi era sobre a mãe.

Agora, nessa situação de calamidade pública, procurei no poeta das águas algo sobre água, tão desesperadamente essencial agora, ainda que a do poeta não fosse a da torneira nem do balde. A vida para ele é como passar de uma margem a outra de um rio, acaba quando já não se volta da outra margem, e há muitas travessias pelo caminho. Queria algo mais prático. Voltei às mãos e à água deste momento. Uma das manchetes deste mês foi que havia torneiras secas na favela, e faltavam caixas d’água para recolher água na hora em que aparecia, nunca se sabia quando vinha, às vezes de madrugada, a SABESP prometeu entregar caixas d’água. Pois é, não mudei, poesia continua não sendo minha prioridade. Só se for para nos dar esperança de que vai passar.

Centro de São Paulo, 31 de março de 2020.