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Incerteza
Este é um artigo inspirado no belo livro de Eugênio Bucci – Incerteza, um ensaio. Como pensamos a ideia que nos desorienta (e orienta o mundo digital), publicado pela editora Autêntica em 2023. Mas também na obra magnífica de Edgar Morin, conhecido como o filósofo da complexidade, que poderia muito bem ser chamado de o filósofo da incerteza, pois é ao perscrutar essa noção que o pensador francês navega em grande parte de sua obra. Não para eliminá-la, mas para dela cuidar. Não se pode ter o objetivo (impossível) de eliminar a incerteza, mas sim de com ela conviver e aprender a viver.
Normalmente, não vemos com bons olhos a incerteza. Preferimos sempre a zona de conforto. No senso comum, incerteza está associada a risco, perigo, ameaça e medo. No entanto, a incerteza tem um lado positivo, ou seja, há uma incerteza produtiva. Nela se sustenta o progresso do conhecimento, pois a incerteza gera dúvidas, que geram perguntas que, por sua vez, nos obrigam a produzir informações. E, com estas, produz-se o conhecimento, seja o científico, seja o do bom senso. Incerteza e conhecimento são os dois elos extremos da cadeia do saber. Quanto maior a incerteza, maior a produção de informações.
Isso não significa que não haja uma incerteza improdutiva. A técnica da desinformação é um exemplo simples e atual. Para Bill Gates, ela é o maior desafio do mundo atual, que somente as novas gerações poderão resolver.
Muitas vezes, a incerteza é associada à entropia, conceito que possui significados distintos nas diversas disciplinas científicas. Pode ser interpretada como a transformação da boa energia em má energia, como se fosse um movimento do superior para o inferior, ao inverso do processo da vida, que caminha dos seres mais simples para os mais complexos. Quando há entropia em um determinado sistema físico-químico, as partículas se movem de forma mais errática, aumentando a incerteza. A desordem cresce com a entropia. Ou seja, quanto maior a entropia, menor a capacidade de previsão; quanto maior a incerteza, menor a capacidade de antecipação.
O teste dessa reflexão pode ser feito ao transportá-la para a atualidade. Como hoje temos muito mais informações do que antes, a conclusão lógica seria que conhecemos mais o mundo e, portanto, teríamos menos incertezas. No entanto, ocorre o inverso: as pessoas sentem mais medo do futuro, pois ele parece mais incerto do que antes. Nunca tivemos tanta informação sobre o mundo, mas nunca tivemos tantas incertezas. A ciência foi construída pelos humanos para resolver problemas decorrentes das dúvidas e das incertezas. Esquece-se, no entanto, que a ciência, ao resolver um problema, cria outros. Como dizia Bernard Shaw, “a ciência nunca resolve um problema sem criar dez outros”. Como afirma Morin, a incerteza não pode ser eliminada e cresce com as sociedades complexas.
Incomodados pela incerteza, os humanos tentam expulsá-la e criar um mundo onde ela não exista. E o criaram: o mundo da religião. Lá, encontram-se os dogmas, a certeza, a crença que não pode ser questionada. Mas essa é uma tarefa vã: a incerteza persiste.
Houve outras tentativas de eliminar as incertezas. Os empiristas do século XIX, com Auguste Comte, acreditavam que o aumento das pesquisas e dos estudos sobre a sociedade abriria a possibilidade de antecipar seus rumos, tornando-a cada vez mais transparente e previsível. Não obtiveram sucesso. No entanto, o desafio e a busca pelo controle social persistem. Deleuze anunciava que o maior poder sobre os humanos não é o da força ou o da persuasão, mas o do controle do desejo. Essa é a quimera que alimenta e persegue a publicidade.
Os tecnólogos do mundo digital partilham dessa crença e possuem uma base material para alcançar esse objetivo. Para a máquina digital que eles criam, o usuário é a incerteza; e quanto mais ele a usa, menor é a incerteza que a máquina tem sobre ele. Assim, o conhecimento que a máquina digital tem de seus usuários cresce a cada dia, enquanto a ignorância desses usuários sobre o funcionamento dessas máquinas digitais permanece abissal.
No entanto, a assimetria de conhecimento não ocorre entre a máquina e os indivíduos comuns, mas entre um grupo extremamente restrito de humanos e o restante da humanidade. De um lado, a elite da elite da elite – os que comandam as máquinas, aproximadamente 0,001% da humanidade, cerca de noventa mil pessoas. De outro, os 99,999%, cerca de oito bilhões e novecentos milhões de pessoas. Essa assimetria reflete a alta desigualdade de riqueza e poder que divide a humanidade.
Estaríamos, então, criando as condições para a realização do prognóstico de Deleuze, que prevê o surgimento de um poder que controla os indivíduos por meio da manipulação de seus desejos? Esse cenário seria possível apenas em um regime extremamente autoritário, onde não há espaço para a incerteza. Para tanto, seria necessário criar um mundo religioso, sem liberdade e sem lugar para a ciência, pois, para a ciência, todo saber é falível. Isso significaria a negação da modernidade, cujo avanço acelerado amplia a incerteza. Foi com essa compreensão que Marx proclamou que “tudo se desmancha no ar”.
Os regimes autoritários não aceitam o valor da incerteza nem do diálogo, pois só progridem no universo das certezas. A incerteza pressupõe liberdade para inquirir e duvidar, algo que esses regimes não suportam. Para a Teoria Matemática da Comunicação, liberdade e incerteza são premissas essenciais da comunicação. Só a democracia tolera e estimula a incerteza, valoriza a diferença de opiniões e a dúvida. Por isso, Adam Przeworski afirmou, em artigo célebre: “Ame a incerteza e serás democrático”.
Ao contrário do que se imagina, muitas personalidades autoritárias são previsíveis. Trump é um exemplo. Sua tática de negociação é conhecida e não muda substancialmente, apenas no tom. Seu discurso estridente visa alimentar seu eleitorado. Ele grita que quer tudo, ameaça, apenas para obter uma parte. Sua perversidade tem método, e seus atos são planejados. O que esconde sua previsibilidade é o fato de ser um indivíduo midiático, que precisa de barulho e holofotes.
Porém, Trump vai além da figura individual: ele é a expressão de uma sociedade doente e em declínio. O poder imperial norte-americano está em queda. Isso não significa que sua economia, tecnologia e força militar desaparecerão em breve, pois o declínio de impérios é um processo longo. O risco é que, em situações semelhantes, países recorrem à guerra para retardar sua falência. Mas Trump, por ora, não pode recorrer a essa estratégia. Sua atual aposta é o protecionismo econômico, um caminho desgastado e fadado ao fracasso, como aponta o editorial da Revista Será? de 31 de janeiro.
O objetivo de Trump de restaurar o poder imperial dos Estados Unidos é inalcançável. Sua verdadeira meta é retardar seu declínio. A ascensão da China, dos BRICS e de outras potências emergentes inviabilizou a hegemonia norte-americana. O “fim da história”, previsto por Fukuyama, revelou-se um relâmpago.
Mas há algo que Trump não sabe: o imprevisível (a incerteza) o espreita. Não custa esperar.
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