
Agricultura regenerativa
No começo deste mês de março encerraram-se as submissões de sugestões para a organização do primeiro roadmap1 a ser realizado em junho pelo Sharm el-Sheikh joint work on implementation of climate action on agriculture and food security – SJWA, durante a próxima Conferência de Bonn. O grupo de trabalho foi criado na COP 27 pela UNFCCC, dando continuidade da cooperação técnica com a FAO iniciada em 2017 através do Koronivia Joint Work on Agriculture – KJWA, cujos trabalhos foram concluídos em 2021, e nesta nova fase estão em processo de implementação. O principal objetivo desta agenda na Conferência das Partes do Acordo de Paris consiste em identificar como a agropecuária (sobretudo o agronegócio) pode ser solução para o problema climático, questionando o estigma de “vilão” da Sustentabilidade, não apenas pelo seu papel de combate à fome, como também pelo atual reconhecimento de seu potencial para captura de carbono, pois a partir de algumas mudanças tecnológicas isso já é dado como certo dentro das discussões sobre o “Acordo”.
A constatação sobre a contribuição potencial das atividades rurais para a mitigação do aquecimento global não se encontra apenas em algumas comunidades de pesquisadores, mas no próprio paper técnico2 elaborado pelo secretariado da última Convenção-Quadro para a discussão dos Objetivos Globais de Adaptação. Segundo este documento, conforme será melhor contextualizado mais adiante, a adoção da chamada agricultura regenerativa (conceito inclui criação de rebanhos) pode não apenas trazer grande contribuição atmosférica como tornar esta atividade uma fornecedora de outros serviços ambientais, como capacidade de contenção de água no solo e recuperação da fertilidade.
Esta realocação do papel da produção de alimentos no debate sobre mudanças climáticas também esteve presente nas resoluções sobre financiamento climático na COP 29. Tratam-se das pautas fundamentais que algumas entidades empresariais brasileiras defendem nas Conferências das Partes, como é possível constatar nos position papers da Confederação Nacional da Agricultura – CNA3 e da Associação Brasileira do Agronegócio4, e tema de debates, por exemplo, no Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável – CEBDS5, todas estas entidades destacando que programas de agropecuária de baixo carbono como o ABC, o ABC+ e o atual RenovAgro consolidaram a reponsabilidade ambiental deste setor no país há pelo menos 15 anos.
Evidentemente, não se está relativizando – nem aqui e nem lá – a importância em se manter a floresta em pé, nem em se recuperar matas ciliares, nem mesmo partindo-se para a defesa da revisão de nosso excelente Código Florestal; abordaremos uma forma de garantir às áreas de atividade no campo, fundamentais para a segurança alimentar e para a transição energética, formas de produzir que capazes de contribuir com a redução do aquecimento global e da escassez de água. Também não se pretende aqui uma apresentação pormenorizada da concepção de agricultura regenerativa; o objetivo é trazer contribuições mensais sobre a arena internacional onde a agricultura sustentável está sendo debatida e negociada enquanto objeto de financiamento climático, e o presente artigo é apenas um começo de conversa. Vamos ao documento orientador apresentado na COP 29 e ao Sharm el-Sheikh Joint Work – SJWA.
Por uma questão de introdução conceitual, mostra-se importante começar por como o comunicado científico do secretariado da Conferência das Partes6 do final do ano passado define agricultura regenerativa. Ela consta entre as 8 transformações tecnológicas deliberadas (ou, disruptivas) capazes de promover o que chama de “transformational adaptation”, e consiste na substituição das monoculturas intensivas em insumos químicos sintéticos e uso excessivo de água por práticas que priorizem a saúde do solo e manejo de seus elementos orgânicos, capazes de promover a captura de carbono e aumento da capacidade de infiltração da água, como plantio direto, rotação de cultura, uso de bioinsumos (sobretudo a fixação biológica de nitrogênio). Trata-se de uma forma específica de agricultura conservacionista, mas com enfoque nas condições de manejo da relação entre elementos orgânicos e inorgânicos do solo, de modo a contribuir para que este conte com microorganismos capazes promover a qualidade do ar e da água, também recuperando a fertilidade do terreno7.
O estudo considera as mudanças da agropecuária tradicional para a intensiva em tecnologia ocorridas nos últimos 40, 50 anos, pois são capazes de fornecer a quantidade necessária para garantir a segurança alimentar, mas defende uma substituição radical do uso de agroquímicos e de métodos que retirem a cobertura do solo. Isso exige a adoção de novos insumos e equipamentos menos agressivos ao meio ambiente.
De acordo com o a organização das pautas que foram tratadas (com os respectivos documentos) da sexta Conferência das Partes – CMA 6 disponível no site da UNFCCC8, além das manifestações das partes, questões relativas à organização do evento e conclusões, estiveram na pauta a apresentação dos resultados dos grupos de trabalho (entre eles o SJWA) e a discussão dos 8 problemas fundamentais para que as metas do Acordo de Paris sejam atingidas: organizacionais, levantamento global, financiamento, desenvolvimento tecnológico, capacitação, Artigo 6 do “Acordo”, compliance e adaptação; este último, onde o diagnóstico do secretariado tratado aqui pautou os debates.
Em outras palavras, apesar da concepção de agricultura regenerativa ter sido abordada em outros temas (como o de financiamento), ela esteve entre as 8 transformações adaptativas que protagonizaram a agenda, marcadamente a que sintetiza os demais problemas tratados: a adaptação. Além disso, é uma alternativa para solucionar o fantasma malthusiano do trade-off aumento da demanda por alimentos versus saturação dos recursos naturais. Esta conscientização quanto à importância da produção em escala proporcionada pelo agronegócio, no centro da instância decisória internacional que direciona os caminhos da sustentabilidade ambiental, econômica e social, se deve em muito à atuação da FAO junto a UNFCCC, e atualmente estes esforços se concentram no Sharm el-Sheikh Joint Work9.
Como foi dito anteriormente, a missão deste grupo de trabalho é implementar o planejamento do Koronivia Joint Work on Agriculture, fórum criado pela FAO10 na UNFCCC em 2017, durante a COP 23, para alinhar os objetivos do Acordo de Paris à produção rural, que além de seu papel como fornecedora de alimentos é a base econômica da maioria dos países em desenvolvimento. O KJWA desenvolveu seus trabalhos de 2018 a 2021, e neles ganhou força o conceito de agricultura regenerativa, em uma versão desta abordagem adequada para a produção em escala. O SJWA surgiu para concretizar os apontamentos elaborados no anterior, e entre 2023 e 2026 tem como objetivo a inclusão mais ampla de alternativas no setor financiáveis por fundos comandados pela UNFCCC (exemplo de recuperação de pastagens e práticas sustentáveis no agronegócio) e a criação de um portal viabilizador de trocas de informações entre os países sobre casos de sucesso, além de estratégias para o engajamento em práticas sustentáveis.
O site foi criado no segundo semestre do ano passado11, onde já é possível encontrar o que foi apresentado por este fórum na COP 29. Também já existe um espaço onde é possível acessar contribuições de órgãos da ONU, como já consta uma da FAO em dezembro, e de ONG’s como International Center for Living Aquatic Resources Management – WorldFish (também adicionado após a Conferência das Partes), e da Hazras Charity Foundation, logo no lançamento da plataforma. As sugestões das “partes” e demais documentos enviados até 1º de março estarão na internet em breve.
Há de se destacar que no SJWA igualmente se trata de agricultura familiar, que se tem maior dificuldade em oferecer produção em massa, sabidamente pode ter maior potencial para oferecer alimentos como hortifrutigranjeiros, além de seu papel de incluir populações em vulnerabilidade social. Igualmente, entre as 8 transformações deliberadas apontadas no paper técnico do secretariado sobre adaptação climática, além da agricultura regenerativa, outro deles é especificamente sobre os pequenos agricultores (o que inclui uma reforma agrária criteriosa). Esta pauta deverá ser tratada no momento oportuno, pois priorizou-se aqui a chamada agropecuária empresarial porque seus impactos negativos e – em caso da aceleração das mudanças nas formas de plantio aconteça – positivos repercutem com considerável força no meio ambiente.
A importância deste grupo de trabalho e da criação de uma plataforma de troca de informações para implementação de políticas nacionais e regionais, além da capacidade que a difusão da informação para induzir o engajamento em práticas sustentáveis, foi destacada em artigo publicado no final de 2024 por Camila Estevam12, do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia do FGV Agro. Um relatório deste mesmo Observatório de Bioeconomia publicado em 2023 traz uma revisão sobre as diferentes visões da Economia da Biomassa, e um paradigma de políticas de bioeconomia em difusão pelo mundo que se enquadra nesta proposta de adaptação que envolve a agricultura regenerativa é a Bioeconomia da Biotecnologia, marcadamente adotada pela China13.
Nem de longe o objetivo deste artigo foi afirmar que a capacidade da mitigação do aquecimento global do agronegócio supera (ou mesmo iguala) a da preservação da mata nativa, da mesma forma que não se pretendeu justificar o desmatamento de áreas destinadas à preservação: a floresta que está em pé deve ser mantida em pé, conforme as próprias entidades representativas dos empresários rurais sustentam. A ideia é trazer subsídios sobre como na principal e mais decisiva arena do debate e da negociação de metas para o meio ambiente está se superando o antigo estigma da agropecuária como principal alvo de limitações regulatórias, algo que parece distante de ser compreendido por diversos setores urbanos no Brasil. Mais que isso, caminhos de transformação estão internacionalmente apontados, e não somos refratários nisso; ao contrário, somos pioneiros. Boa parte do que vem ganhando protagonismo nas agendas de sustentabilidade já possui iniciativas nacionais, como os já citados planos ABC, ABC+ e RenovAgro, e isso deve ser um trunfo em nossas relações econômicas internacionais, não motivo de acanhamento. Temos uma COP em Belém, e não podemos perder a oportunidade de aproveitar a força de sermos sede e colocarmos tudo isso sobre a mesa.
1 – Fonte disponível em < https://unfccc.int/topics/land-use/workstreams/agriculture >, , acessado em 27/03/2025.
2 – Fonte disponível em < https://unfccc.int/documents/641403 >, acessado em 27/03/2025.
3 – Fonte disponível em < https://cnabrasil.org.br/publicacoes/position-paper-da-confederacao-da-agricultura-e-pecuaria-do-brasil-2 >, acessado em 27/03/2025.
4 – Fonte disponível em < https://abag.com.br/solucoes-climaticas-da-agropecuaria-a-caminho-da-cop30/ >, acessado em 27/03/2025.
5 – Fonte disponível em < https://cebds.org/noticia/cebds-lanca-publicacao-agricultura-regenerativa-no-brasil-desafios-e-oportunidades-na-cop28/ >, acessado em 27/03/2025.
6 – Fonte disponível em < https://unfccc.int/documents/641403 >, acessado em 27/03/2025
7 – Publiquei um material mais detalhado sobre agricultura regenerativa no site da Associação Comercial do Amazonas, disponível no link < https://aca.org.br/a-cna-e-a-agricultura-regenerativa-na-cop-29/ >, acessado em 27/03/2025
8 – Fonte disponível em < https://unfccc.int/event/cma-6 >, acessado em 27/03/2025.
9 – Fonte disponível em < https://unfccc.int/sites/default/files/resource/cp2022_10a01_adv.pdf#page=16>, acessado em 27/03/2025.
10 – Fonte disponível em < https://www.fao.org/climate-change/action-areas/climate-negotiations/sharm-el-sheikh-joint-work/en >, acessado em 27/03/2025.
11 – Fonte disponível em < https://unfccc.int/topics/land-use/workstreams/agriculture/sharm-el-sheikh-online-portal >, acessado em 27/03/2025.
13 – Fonte disponível em < https://periodicos.fgv.br/agroanalysis/article/view/93110/87186 >, acessado em 27/03/2025.
13 – Fonte disponível em < https://agro.fgv.br/publicacao/ocbio-transicao-verde-bioeconomia-e-conversao-do-verde-em-valor >, acessado em 27/03/2025.
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