
Trump
Quando visitou os Estados Unidos em 1831, Alexis Tocqueville, filósofo francês e grande referência do pensamento liberal, ficou encantado com o sistema pesos e contrapesos dos Estados Unidos. Vem daí a sua obra clássica “A democracia na América”, publicada em 1835. Para Tocqueville, a resiliência da democracia americana vinha de diversos fatores: sistema federativo forte, separação dos poderes com um judiciário independente, igualdade de condições, mobilidade social, imprensa livre e sociedade civil pujante.
No seu entendimento, tudo isso contribuía para que não fosse instalada uma “ditadura da maioria” nos Estados Unidos, uma das grandes preocupações do pensador político francês. A democracia estudada por Tocqueville já tem quase 250 anos e teve resiliência suficiente para sobreviver a uma guerra civil, ao assassinato de quatro presidentes, à grande depressão dos anos 30, à duas guerras mundiais, à guerra-fria, sem falar nas guerras do Vietnã e da Coréia. Também ao Macartismo, à segregação racial que impulsionaram as jornadas pelos direitos civis e ao escândalo do Watergate que redundou na renúncia de Richard Nixon. Nesses dois séculos e meio, a democracia americana foi submetida a intensos estresses, mas, muitas vezes, saiu mais forte.
De fato, este acervo é imenso. Mas isso não afasta as preocupações de cientistas políticos dos Estados Unidos quanto ao futuro da democracia americana, diante dos rumos do governo Trump já na largada do seu segundo mandato. Tal preocupação levou Steven Levitsky, um dos autores do livro “Como as democracias morrem” a escrever um extenso artigo intitulado “O caminho para o autoritarismo”. Segundo Levitsky, “a democracia está em maior perigo hoje do que em qualquer período da história moderna dos Estados Unidos” e marcha para um “autoritarismo-competitivo”.
O conceito de “autoritarismo-competitivo” tem por objetivo demonstrar que o colapso da democracia não se dará pela via de uma ditadura clássica, onde as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou assassinada. Na avaliação de Steven Levitsky, mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição, pois, se tentar, será contido pelo federalismo americano, por juízes independentes e por altas barreiras para a Reforma Constitucional.
Assim, os Estados Unidos podem desembocar em um tipo de autoritarismo similar ao de países como a Hungria e a Turquia onde permite-se a existência da oposição, eleições acontecem, mas a democracia liberal está despida de sua essência, baseada em eleições livres e justas e rígida observância das liberdades civis. Ou como diz o autor do artigo Caminho para o autoritarismo: “O que está por vir não é o fascismo, ou ditadura do partido único. Mas o autoritarismo competitivo – um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do incumbente inclina o campo do jogo contra a oposição.” A Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro é um exemplo clássico desse tipo de autoritarismo.
A pedra de toque para Donald Trump alinhar a estrutura estatal ao seu projeto de poder é a politização das instituições estatais, combinada com a instrumentalização política de agências governamentais.
Os Estados Unidos tem um serviço público baseado no mérito e no profissionalismo desde 1883, quando foi aprovada a lei Pendleton Servic Act, cujo objetivo era combater o clientelismo e a corrupção. A profissionalização do funcionalismo, com vistas a impedir sua instrumentalização política foi aperfeiçoada após o escândalo de Watergate, quando o então presidente Nixon usou parte do aparato estatal para espionar opositores.
Essa profissionalização vem sendo atacada por Trump, com o objetivo de substituir os servidores públicos de carreira por um exército de aliados seus. Organizações de extrema-direita prepararam uma lista de 54 mil simpatizantes para serem nomeados em cargos estratégicos por Trump. No seu primeiro mandato, o presidente instituiu a Ordem Executiva Schedule F, lhe dando poderes de substituir servidores públicos de carreira por aliados políticos seus. Essa Ordem Executiva foi reinstaurada no seu segundo mandato.
Seu objetivo é transformar o Estado em uma arma contra a oposição. Há uma tendência de utilizar órgãos como o Departamento de Justiça, o FBI e a Receita Federal para investigar e processar adversários políticos, jornalistas e líderes empresariais que se opõem ao governo. Essa prática visa intimidar e silenciar a dissidência, criando um ambiente de medo e autocensura. Da mesma forma, utiliza políticas econômicas e decisões regulatórias para beneficiar indivíduos e empresas que demonstram lealdade política. Isso inclui a concessão de contratos governamentais, isenções fiscais e outros benefícios a aliados, enquanto opositores enfrentam obstáculos e penalidades.
Não é a primeira vez na história americana em que a máquina pública é usada para perseguir desafetos e beneficiar aliados. Isso ocorreu durante o período do Macartismo nos anos 50 e nos Estados do Sul, logo após o fim do período da Reconstrução (fim da Guerra Civil) quando as leis Jim Crow deram status legal ao segregacionismo.
A gravidade do momento é que a ameaça à democracia é sistêmica, a partir do poder central instituído legitimamente por meio do voto dos americanos.
Se o autoritarismo competitivo conseguir se implantar, a democracia americana estudada por Tocqueville há quase 200 anos e exemplo para o mundo estará despida de sua essência e poderá se transformar naquilo que o pensador político francês mais temia: uma “ditadura da maioria” por um governo que não admite a diversidade. Nos anos 50, os inimigos públicos eram os suspeitos de serem comunistas. Agora são os imigrantes.
Mas a consolidação do autoritarismo competitivo não está dada. O próprio Steven Levitsky, ao final do seu artigo alerta que o apoio limitado a Trump e os erros inevitáveis criarão oportunidades para as forças democráticas no Congresso, nos tribunais e nas urnas.
Mas isso só acontecerá se houver a permanência de todos na trincheira da resistência democrática. Vale o alerta dado ao final do artigo “O caminho para o autoritarismo”: “Quando o medo, o cansaço ou a resignação suprimem o compromisso dos cidadãos com a democracia, o autoritarismo emergente começa a criar raízes”.
comentários recentes