JK

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Lisboa. Durante o tempo em que andei longe das folhas, ocupado em coisas muito importantes (pegar tanajuras, o mar, os netos), houve no país notícias de topo tipo. Uma delas chamou atenção por estar na primeira página de nosso Jornal do Commercio, mês passado, “INVESTIGAÇÃO SOBRE MORTE DE JK RETOMADA”. Não só nele. O Globo é explícito, “O governo Lula decidiu reabrir o caso”. Estadão, “O governo Lula e a Comissão reabrem o caso”. E Folha de São Paulo, na mesma linha, “Laudo faz governo Lula retomar caso nebuloso de morte de JK”.

Nessas matérias se vê que a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos (do Ministério dos Direitos Humanos), com membros do PT nomeados em Brasília por esse mesmo governo Lula, está correndo o país a fazer audiências públicas e a tentar reabrir um caso, segundo ela, “cercado de controvérsias desde as primeiras investigações”. Indicando a possibilidade de “sabotagem mecânica, tiro ou envenenamento do motorista”.

Antes de seguir na argumentação, devemos perguntar se objetivo dessa comissão será mesmo chegar à verdade. Ou apenas reavivar no país um clima de confronto ideológico, sobretudo por interesses políticos ou partidários. Mas vamos aos fatos.

Em 2014 apresentamos, em cerimônia realizada no CCBB (Brasília), o laudo da perícia que fizemos na Comissão Nacional da Verdade. Depois de mais que um ano de estudos.  Fato curioso é que, quando estávamos nos preparando para essa apresentação ao público, alguns jornalistas da Folha e do Estadão nos informaram que a Comissão da Verdade de São Paulo acabava de apresentar laudo próprio, indicando que JK teria sido assassinado.

Considerando que estávamos tornando público nosso laudo naquele momento, e se quisessem mesmo apurar a verdade, o mínimo que se deveria esperar é que PRIMEIRO estudassem nosso laudo; para DEPOIS, já considerando tudo que dissemos, apresentar o deles. Aceitando ou rejeitando o nosso.

Sendo mesmo de esperar que a posição atual, na Comissão do Governo Lula, seja basicamente a mesma, naquele tempo, da Comissão de São Paulo. Por serem formadas por quase as mesmas pessoas.

Vamos, então, aos principais aspectos do laudo que firmamos na Comissão Nacional da Verdade:

TRÊS MORTES EM SEQUÊNCIAS. Morreram, em pouco espaço de tempo, menos de um ano, as três maiores lideranças civis da oposição no Brasil: JK, 22/08/1976, no Rio; João Goulart, 06/09/1976, em Mercedes (Argentina); e pouco depois Carlos Lacerda, 21/05/1977, no Rio. Por conta disso a ideia de que tenham sido assassinados por agentes do Governo Militar se alastrou, no imaginário coletivo. Mas o que aconteceu de fato?, eis a questão.

LACERDA E JANGO. Com relação a Lacerda, sua família sempre acreditou que a morte se deu por problemas de saúde. Um câncer que o roeu, sem piedade, por quase três anos. E o deixou, em boa parte desse tempo, numa cama de hospital. Sem maiores interesses numa investigação. Para seus familiares, ninguém perderia tempo na eliminação de um já quase cadáver.

Jango morreu com enfarte, algo até esperado em obeso com largo histórico de problemas cardíacos. E o caso continua inconcluso – com fragmentos de seus ossos, ainda hoje, sendo analisadas por laboratórios especializados em Portugal e Espanha. Para identificar a presença (ou não) de cianureto. Confirmando (ou não) a tese de que teria sido envenenado. Sem muitas esperanças de que algo seja encontrado. Bom lembrar que nenhum depoimento que coletamos, na Comissão Nacional da Verdade, teve mínimos de seriedade capazes de nos levar a considerar respeitável essa hipótese.

O CASO JK. O terceiro caso é JK. No momento de sua morte, para o povo brasileiro, a mais nítida esperança de volta à democracia numa eleição direta.  A Comissão Nacional da Verdade examinou, com extremo rigor, todas as implicações do caso. E apresentou Laudo, em 22/4/2014, com 139 páginas. Firmado por 5 renomados peritos (os melhores da época, segundo a PF) que trabalharam, nele, desde 2012. Examinando 23 perícias e afins, já antes realizadas. Mais 298 negativos de fotos referentes a imagens do caso. E fazendo novos exames.

Acompanhei todos os trabalhos realizados no caso, de perto e com atenção, por uma razão de foro íntimo. A de ser ele padrinho no casamento, de Maria Lectícia e meu. E o fato de muito gostar dele, como pessoa.  Sempre nos encontrando, quando íamos ao Rio. Segue-se uma tentativa de resumir esse Laudo em linguagem mais facilmente compreensível pelo grande público.

RODOVIA PRES. DUTRA, quilômetro 165. Era domingo e JK voltava para casa. Mais tarde que gostaria, no começo da noite, já quase escuro. As colisões dos veículos ocorreram numa reta próxima de Resende (Rio). Com o Opala de JK e o Ônibus da Viação Cometa (com quem se chocaria, inicialmente) indo na direção São Paulo/Rio de Janeiro. Enquanto na outra pista em direção contrária, Rio de Janeiro/São Paulo, vinha um caminhão SCANIA carregado com 30 toneladas de gesso. Foi ele o responsável pelas mortes de JK e seu motorista, Geraldo Ribeiro.

Era plana, gramada e sem guard-rails, a área de separação entre as duas pistas. E também planos os acostamentos e as áreas adjacentes (mais de um quilômetro), em ambos os lados. Certo que, fosse mesmo um atentado, e certamente o local escolhido para isso deveria ser outro. Provavelmente uma curva, junto a precipício. Em que o carro, fora de seu trajeto regular ao sair da estrada, e só por sua situação geográfica, ofereceria um concreto risco de morte.

ABALROAMENTO. Para quem planeja um atentado, último veículo do mundo que se utilizaria para provocá-lo seria um ônibus. Lento. E cheio de passageiros (40), testemunhas oculares da tragédia.  Bem mais eficiente seria um carro sem placa, de vidros escuros e rápido. Valendo lembrar que o ônibus estava em velocidade menor que a do Opala. E na sua trajetória normal. A batida entre esse ônibus e o Opala, em que estava JK, se deu com seu veículo invadindo a faixa da esquerda, por onde trafegava o ônibus. Talvez, um cochilo do motorista. No chão, ficaram marcas dos pneus, como prova do desvio que teve o Opala na sua rota normal, que seria seguir em frente. Sem registro de nenhuma outra marca no chão. Basta ver as fotos. E a versão de que o carro de JK teria sido tocado por outro veículo não se sustenta. Dado que únicas marcas de abalroamento, no Opala, são rigorosamente coincidentes com as que ficaram no ônibus.

TRAJETÓRIA DEPOIS DO ALBARROAMENTO COM O ÔNIBUS. O Opala, dirigido pelo motorista Geraldo Ribeiro, se desgovernou após esse primeiro abalroamento. Ultrapassou o canteiro central e avançou na direção da pista contrária. Dali, numa situação normal, seguiria em frente. E caso continuasse nessa trajetória, depois do acostamento, entraria em uma área plana e de mato baixo. O que causaria para o veículo danos de pouca monta. Alguma pedra que arranhasse a lataria ou um pneu furado, no máximo.

Segundo o Laudo, entre o abalroamento e o choque com a carreta Scania, se passaram 2 segundos. Ou cerca de 45 metros. Os peritos sabem que o tempo médio de reação humana, em casos de acidente, é cerca de 1,5 segundos. E o que ocorreu?, então. Provavelmente deu-se que o motorista do Opala, passado o breve instante de torpor com o abalroamento no ônibus, terá reagido virando à direita. Para impedir que o veículo fosse além do acostamento. Como se quisesse evitar danos (caso seguisse em frente) ao veículo. E no desejo de retomar sua viagem, normalmente. Passaria à esquerda do caminhão pelo acostamento, assim pensou, e voltaria depois à pista.

Era o que desejava. Só que por azar, muito azar, não conseguiu realizar essa operação. Chocando-se, a parte frontal direita de seu Opala, com a parte frontal direita da carreta Scania, que vinha em sentido contrário; sendo, então, arrastado por 30 metros. Por pouco não conseguiu, é pena. Com um mínimo de sorte não se tocariam, os dois veículos. Como dizia Saint-Exupéry (Citadella), “A ocasião que falta é aquela que conta”.

OUTRAS HIPÓTESES. A versão de que o Opala foi vítima de bomba, posta no veículo e disparada à distância, também não é crível. Por não haver qualquer resíduo de plástico ou pólvora, no chão da estrada ou no veículo. Como se daria, caso tivesse havido mesmo uma explosão.

Igualmente, a versão de um tiro de precisão na cabeça do motorista de JK não se sustenta. Primeiro, porque o crânio de Geraldo Ribeiro, segundo se vê nas fotos da época (apresentadas no Laudo), não tinha qualquer lesão. Muito menos por furo de bala. Segundo porque, caso tivesse o motorista sido atingido por uma bala no crânio, e jamais poderia, logo após o abalroamento com o ônibus, ter alterado conscientemente a trajetória do veículo em que estava dobrando à direta. Como fez. Com lucidez. Ainda pensando escapar ao acidente sem maiores consequências.

BALA. Num dos últimos exames, foi localizado pequeno objeto de metal dentro do crânio do motorista de JK. Uma bala!, para muitos. Prova do assassinato!, não faltará quem diga. Esse objeto acabou encontrado em uma fenda larga, nesse crânio, medindo em linha reta cerca de 10 centímetros. Com bordas claras – prova de ter sido fratura posterior, no tempo. Até porque todas as fotos, que constam das primeiras perícias, revelam um crânio intacto, amarelado. E fraturas similares são comuns, depois do óbito, com o passar do tempo. Dada a fragilidade dos ossos em decomposição.

Já o metal do referido instrumento não era um composto de liga de chumbo, próprio dos projéteis de bala. Mas ferro doce. O mais simples e mais barato. Tendo, aquele objeto, diâmetro muitas vezes menor que o de um projétil de revólver 38 (dado se afastar pudesse vir a ser usado calibre menor, num atentado). Sem contar que, nesse caso, seriam provavelmente projéteis 44, 45, ou ainda maiores.

As fotos desse objeto, comparadas com um projétil 38 (ou 44, ou 45), não permite dúvidas. Provando o Laudo se tratar, na verdade, apenas de um cravo – exatamente similar aos usados para pregar a seda, normalmente de segunda categoria, que fica por dentro da madeira dos caixões funerários. Rigorosamente igual aos cravos que prendiam aquela seda no caixão em que foi enterrado seu motorista. Cravo do caixão, meus senhores, e nunca uma bala.

RESUMO. Não há dúvida, pois, de que se tratou mesmo de um acidente automobilístico (quem tiver maior interesse no caso basta acessar, pela internet, o site da Comissão, com a íntegra do Laudo e seus anexos). Não assassinato, só acidente. Cabendo, ainda, uma última palavra. Para dizer que a história tem suas tramas. Seus designíos. E seus mistérios. Porque o Regime Militar certamente ficaria feliz em ver morto JK. Um risco a menos. Mas é como se o destino, esse “Deus sem nome” como queria Pessoa (carta a Henry More), tivesse agido antes. Essa é a verdade.