Já estava perto da meia-noite na Rua do Bonsucesso, Sítio Histórico de Olinda no 1º de março de 2025. Uma multidão, trabalhada nas mais criativas fantasias, orgulhava-se das suas cores: verde e branco. A espera ansiosa era pelo calunga encantado: o Homem da Meia-Noite. Símbolo tradicional do Carnaval olindense, é considerado Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2006.

No entanto, quando saiu de sua sede um dos personagens mais místicos de todo o Carnaval brasileiro, violentas bolas gigantes e azuis, carregadas por trabalhadores que apenas buscavam seu sustento, tomaram conta da visão. Eram tão grandes que a população, que aguardava ansiosamente pela apoteose do calunga, não conseguiu vê-lo.

Essas gigantes (e horripilantes) bolas de marketing fazem parte do bloco das bets patrocinadoras do Carnaval. Sem citar nomes. No entanto, elas estão por todos os lugares, simultaneamente. Distribuem chapéus, destroem a paisagem, atrapalham a folia e ainda endividam o cidadão mal informado e esperançoso.

Enquanto Olinda era tomada por essas bolas, na cidade do Recife os brindes dominavam o cenário, assim como seus camarotes patrocinados. O Carnaval, conhecido por seu senso democrático e seu canto de guerra da vitória contra a grande máquina de shows e hiperespetáculos, já não é mais vitorioso. O Bloco da Vitória, que sai às ruas, agora já não é mais tão vitorioso assim.

Por que isso é tão alarmante?

A poluição visual dos pontos históricos das cidades-irmãs não é novidade. No entanto, algo tão direto e violento, sim. Como alguém que pula Carnaval, me assustei com o que vi. Como alguém que pesquisa o Carnaval, vários sinais de alerta se acenderam. Isso porque essa tendência já toma conta do Brasil (R.I.P. Brasileirão sem sobrenome), e seu resultado poderá ser extremamente desastroso.

O desastre iminente pode ser avaliado por três pilares: pela pesquisa e comparação histórica, pelo ponto de vista da cidade e pelo corpo.

O saudoso Leonardo Dantas, um dos maiores historiadores pernambucanos e maior conhecedor do Carnaval e sua história, comentou, no livro Carnaval do Recife (lançado pela Cepe em 2019), que os formatos de Carnaval podem ser separados historicamente em dois momentos: Carnaval-participação e Carnaval-espetáculo.

Nesse sentido, a ideia de Carnaval-participação, em sua definição mais simples, é a ideia atualmente utópica do ser-festa: um momento sem separação, onde povo, agremiação e rua se misturam, tornando-se um só. Nele, o Carnaval é a festa da liberdade, sem divisões e totalmente democrático. No Recife, esse formato perdeu fôlego durante a década de 1970 com as regras dos anos de chumbo. Essas forçaram a criação de divisões entre o povo e a agremiação. O famoso “hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria”, como cantou Chico Buarque. Uma boa hipótese sobre esse movimento está na necessidade de apagar o fogo popular revolucionário da festa.

Com a década de 1980 e a chegada da democracia no Brasil, o Carnaval-participação continuou em seus últimos suspiros de glória. Enfraquecido, respirava com apoio de máquinas. Sua morte foi declarada, segundo o livro de Dantas, em 2002, a partir da Lei do Carnaval Multicultural do Recife (Lei nº 16.784/02). Com ela, um novo período se instaurou, e a grande regência do Momo tornou-se enfraquecida com a chegada dos grandes palcos: estava iniciado o reinado do Carnaval-espetáculo.

Nele, o público perde o status de protagonista e vira um mero espectador do pão e circo carnavalesco. Dessa forma, a maior característica do Carnaval-espetáculo está na palavra DIVISÃO. Tudo está dividido: entre palco e multidão, camarotes e pipoca. A ideia do Carnaval-espetáculo é influência direta do conceito desenvolvido por Guy Debord em meados da década de 1960, onde critica a sociedade contemporânea ao apontar a mediação das relações sociais a partir de imagens. O povo não participa, o povo assiste. Atualmente, o povo nem assiste: leva seu celular e vê através de uma tela para poder dizer que esteve lá. Nessa relação, existe a consequência final já anunciada por Debord, que leva à alienação total e à perda de autenticidade nas relações humanas.

Por esse caminho, reconheço a existência do retorno financeiro em criar grandes palcos espetaculares. O povo vai, o povo gosta. Isso é mercado, é turismo, é dinheiro para investimento. Mas, como pesquisadora e carnavalesca, não aceito. Atualmente, com os patrocínios das bets, o Carnaval começa a se transformar em uma nova era que ainda não poderei apontar direito qual é – embora minha pesquisa de mestrado, a ser defendida pela Universidade de São Paulo no primeiro semestre do ano corrente, arrisque dar uma resposta.

Arrisco apontar que o Carnaval das bets é a celebração do liberalismo e seu senso individualista total. O Brasil da dancinha do TikTok, dos livros estilo Café com Deus Pai, do agro, do microempreendedor e dos influencers não são histórias separadas: são, simultaneamente, sinônimo e consequência da falta de criação de uma educação de base. Isso aqui é vítima direta de todos os processos golpistas que o país já sofreu. Somos todos vítimas, inclusive os que utilizam esses mecanismos. O Brasil que deu certo para a grande direita devota mercantilista do Norte Global.

A cidade e o corpo

Essa situação agravante deve ainda ser observada por dois pontos que aqui abordarei de forma conjunta: pela cidade e pelo corpo.

No livro A estetização do mundo, escrito pelos filósofos Jean Serroy e Gilles Lipovetsky e lançado no Brasil em 2015, a ideia do espetáculo ganha o sufixo HIPER. Nesse contexto, a sociedade do hiperespetáculo atualiza a realidade já trazida por Debord, observando como as dinâmicas do espetáculo evoluíram na era digital, tornando-se onipresentes e totalizantes, integrando todas as partes da vida.

Não me atrevo a falar e nem a relacionar isso com a fragmentação da identidade vista em Stuart Hall, muito menos com a questão da sociedade do cansaço, pontuada por Byung-Chul Han, embora ache necessário destacar que elas são consequências diretas desse movimento. Esta análise foca em apenas uma questão: a destruição da cidade como espaço de vivência para transformá-la em auxiliar dos processos espetaculares.

Isso porque, no conceito de Lipovetsky e Serroy, com a cidade sendo transformada em outdoor vivo, as questões de consumo individual em relação a si próprio e aos espaços que o cercam (a urbe) ficam gritantes. A cidade é o ambiente onde o lúdico é transformado através do elo comercial e da estética mercantil. No desejo final de viver, acaba-se aprisionando-se.

Recife e Olinda, tomados por propagandas de algo tão danoso, perdem, pouco a pouco, sua característica ímpar e transformam-se apenas em vetores comerciais de mensagens prejudiciais. Nesse sentido, o povo que vive nessas cidades segue seu exemplo.

O Carnaval é o momento de performance e liberdade. No momento em que as pessoas aceitam, por exemplo, utilizar os brindes doados pelas casas de apostas, perdem de seus corpos sua individualidade. Tornam-se meios diretos de informação; neles existe um marketing exposto, um convite ao consumo disfarçado de agrado.

As ruas e o corpo se unem em uma festa transformada em propaganda. Somos transmissores de mensagens e vítimas associadas ao meio. A cidade é uma extensão do corpo e está corrompida; seus ritos seguem o mesmo caminho. Tudo o que resta é questionar: e agora?