Luiz Otavio Cavalcanti

A crise brasileira é de representatividade. Nos recentes quarenta anos, pelo menos, firmou-se um pacto. Entre elite política (governo e maioria congressual), elite econômica (empreiteiras e bancos) e elite cultural (intelligentsia e show business). Objetivo: manter status quo. Cada qual com um pedaço do bolo. Garantindo seus ganhos: corporações públicas, empresas privadas e oligarquias políticas.

É isto mesmo ?

Em outra época, com outra gravidade e outro recorte, foi o que ocorreu na Alemanha nazista. A sociedade alemã permitiu que Hitler desenvolvesse seu projeto de poder e destruição. Ele contou não só com suporte de grandes grupos industriais alemães. Mas foi apoiado majoritariamente pela classe média. E por parte importante da elite cultural germânica.

Hitler não era nenhum gênio político. Na prática, ele aproveitou o espaço político que lhe foi dado. Sendo beneficiado institucionalmente pela decrepitude do velho Hindenburg. Nos anos de 1920 da frustrada social democracia de Berlim. E pela omissão da sociedade alemã. A misteriosa cumplicidade do mal daqueles que não parecem ser maus, como disse o filósofo Hermann Broch.

Por sua vez, Lula e Bolsonaro também não apresentam traço de genialidade política. Longe disso. Lula nunca foi particularmente brilhante como político. Seu formulador mais conhecido era José Dirceu. Além do comitê partidário que funciona como instância de pensamento. Sua eleição resultou, de um lado, da frustração do eleitorado com o discurso tucano. De outro lado, com o aceno de conciliação que o petista anunciou na Carta aos Brasileiros. Convidando, inclusive, o ex presidente do Bank of Boston, Henrique Meireles, para dirigir o Banco Central. No fundo, Lula foi eficiente aprendiz, aplicado, no exercício do poder.

Por sua vez, Bolsonaro evidencia mais limitações pessoais. Não tem qualidade política. E não demonstra senso de humildade. Ao contrário. Caracteriza sua atuação com improvável agressividade. Que não se coaduna com perfil de elevada altura política. Sem grandeza pessoal.

Sua vitória decorreu de dois motivos claros. O primeiro, foi movimento eleitoral que é tendência mundial. Em favor de candidatos de feição populista e nacionalista. Ocorreu nos Estados Unidos, Hungria, Turquia, Itália. O segundo motivo foi forte reação popular à prática de corrupção que dominou o PT no governo.

Tanto Lula quanto Bolsonaro encarnam a figura de homem massa, estudada por Ortega y Gasset. Ou seja, personalidades com exacerbada auto imagem. Beneficiadas por circunstâncias específicas. E aguda ambição. Compensando a falta de preparo pessoal por senso de oportunismo.

Lula e Bolsonaro não são lideranças de aptidões excepcionais. Mas são representativos de categorias sociais: trabalhadores e militares. Representações corporativas que os ajudaram no êxito de seus itinerários políticos.

Exército: não aos liberais.

Nesse contexto, é essencial analisar a projeção do Exército, no governo Bolsonaro. Comparando sua participação atual com a de 1964. Em 64, os militares foram autores. Agora, são atores.

Quando o modelo de intervenção militar declinou, no fim dos anos de 1970, fixou-se uma política. A distensão segura, lenta e gradual dos generais, Geisel, presidente, e Golbery, ministro chefe da Casa Civil. O decisor e o arquiteto da linha distensora.

Essa é diferença importante entre as duas épocas: no governo Geisel, estava presente um militar que era também intelectual: Golbery do Couto e Silva. Estudioso de geopolítica. Autor de livro sobre o assunto. Vinculado à Escola Superior de Guerra – ESG. Parceiro de Geisel no projeto de abertura política. Golbery era uma luz, um facho de lucidez influenciando os rumos do governo.

No governo Bolsonaro, não há pensador, não há formulador. A luz é fraca, não há capacidade de criar, não há espaço para discussão. O conjunto de generais, deslocado da ativa para o Palácio por Bolsonaro, é de profissionais. São militares clássicos. Sua experiência é de puro profissionalismo.

É uma geração diferente da geração de generais como Geisel, Golbery, Cordeiro de Farias, Castelo Branco, Juarez Távora, Teixeira Lott. Que viveram os episódios políticos de 1954. E que desembocaram em 64. O grau de politização no Exército de então era bem mais nítido que o de hoje.

Golbery era um hobbesiano típico. O Estado fora criado para garantir a proteção ao indivíduo. Ele afirmava: “Povos são mito; só existem nações, e nação é Estado”. Para ele, liberdade era valor instrumental. Que existia para viabilizar o equilíbrio entre estabilidade e progresso.

Nessa perspectiva, ele defendia uma terceira via entre liberalismo e totalitarismo: o planejamento democrático. Ou seja, uma visão autenticamente hobbesiana.

Foi numa célebre conferência, feita na ESG, que Golbery começou a angariar apoio à política de distensão. Seu argumento principal era o seguinte: as extremas direita e esquerda não diferem muito, em suas naturezas, tanto que formam uma ferradura. Cujas pontas se tocam. Fechando um circuito de semelhanças construídas em radicalismo congênito.

Aqui, é preciso acentuar que o sentimento liberal, dentro do Exército, sempre foi elemento de discórdia. Divisor de águas. Os liberais, no Exército, tinham a porta aberta para aliança com a esquerda. Esta, a via liberal, é a única alternativa capaz de unir esquerda e setores do Exército.

Por isso que Bolsonaro e seus acólitos não admitem a visão mais aberta dos liberais. Aprisionam-se no cadeado do reacionarismo, do retrocesso, do preconceito, da uniformidade ideológica. Com medo da diversidade e da inteligência. Temendo a experiência e a liberdade.

Não foi por outra razão que a ala dura do Exército pressionou Costa e Silva. Que terminou se impondo, como candidato, em 1966, ao então presidente da República, Humberto de Alencar Castelo Branco. Este, a maior liderança liberal entre os militares brasileiros.

Portanto, uma aliança de cunho liberal, em arranjo amplo de forças de centro, é inviável no governo Bolsonaro.