
Death and Life – Egon Schiele
Ê Galo Véio, chegou tua hora! Minha geração é a bola da vez. Uns vão apagando: continuam entre nós, disfarçam, os mais ladinos, mas o hard disc já era. Outros apagam de vez. Desses, felizes os que morrem junto aos entes queridos, longe dos tubos e encanações de uma UTI. Foi assim que morreu ontem Fernando Barbosa. Hoje, primeiro de abril, o corpo cansado desse torcedor do Santa Cruz, que acabou de completar 92 anos nesse mês de março, vira pó, para ser jogado nos mares da praia de Itamaracá.
Na praia de Itamaracá conheci Fernando e Socorro. Bartira e Betina, meninas. Dona Maria, a preta velha de óculos, igualzinha à Irene de Manuel Bandeira, na retaguarda preparando as mamadeiras, sob a rigorosa supervisão do pater família médico. Era o ano de 1969.
A praia do Forte de Orange em Itamaracá era uma imensidão de coqueiros, aqui e acolá escondendo casinhas de pescadores. Atolar o carro no areal era rotina aos que se aventuravam chegar à casa dos quatro casais que desbravaram aquele pedaço deserto de mar limpo e tranquilo. Mas bastava um grito ou um assobio, e lá vinha algum pescador com outros ajudantes para improvisar umas palhas de coqueiro e tirar o carro do atoleiro. O fusca era um bravo nessas situações.
Era muito raro irem os quatro casais e filhos aos finais de semana. 1969 foi o ano de meu namoro com Hamilton. Frequentávamos aquela casa sem água encanada nem luz elétrica, e aquele foi nosso paraíso, nossa lua-de-mel antecipada. À noite, no terraço escuro, ouvíamos fitas cassete, proseávamos, às vezes um violão principiante arranhava umas melodias para todos cantarem. Guardei por muito tempo a fita de chorinhos cantados por Nara Leão. Perdi minha virgindade na cama de Mário Borba.
Fernando era um homem que sabia cevar caranguejo. Como apreciava uma boa comida, uma boa bebida! E, como gostava de ensinar aos outros, não a história, que também sabia, pois estudou medicina e estudou história na universidade, mas ensinar trivialidades da vida. Ensinou-me a comer caranguejo comme il faut, assim como depois a meus filhos, e quem mais quisesse aprender. Que almoços domingueiros eram aqueles…
Depois do almoço, regado a caipirinhas, cervejas, o médico se deitava na rede do terraço para uma demorada sesta. No batente da calçada, ia-se formando uma fila dos pescadores da redondeza e familiares. Lembro Marcelino, o mais assíduo, o faz tudo que sabia os códigos praieiros. A consulta era feita ali mesmo, ele na rede, ouvindo as queixas, saindo da rede quando carecia examinar. Os remédios de amostra grátis resolviam quase tudo, e Socorro tinha-os à mão. Mas houve um paciente que pediu reserva na conversa com o doutor, queixando-se que estava nó-pró e que nem amendoim nem ovo de codorna haviam resolvido. Nunca soube que encaminhamento o dr. Fernando deu para esse caso.
Em 1987, fizemos uma viagem de férias à velha Espanha, para conhecer os parentes galegos de Hamilton de Vigo, Pontevedra, Gajate. Meu sogro, com o maior orgulho em apresentar o filho engenheiro aos do pequeno povoado de Gajate, onde uma velhinha, toda de negro, me abraçou dizendo, “casaste com gente de buena gente”. Dali fomos a Paris. Socorro e Fernando estavam nessa época em Bielefeld, ela fazendo doutorado em história, Fernando, um acompanhante que tirou tanto proveito em morar fora do país quanto a doutoranda: estagiou em hospitais e se especializou em doenças tropicais.
Combinamos com antecedência nosso encontro em Paris. Eles escolheram para nós um hotel na Place d’Italie, e foram de carro da Alemanha para nos encontrar. Nas ruas de Paris, nós duas muito conversávamos nossos assuntos, enquanto os homens observavam os carros estacionados, as carrocerias Mercedes Benz fabricadas no Brasil. Haviam programado um encontro com exilados, entre eles Miguel Arraes, que veio de Argel, num almoço na casa de alguém. Socorro? Foi na casa de quem, mesmo? Terá sido Violeta? Dia seguinte, seguimos no carro deles para Bielefeld, por estradas magníficas, de alta velocidade, e pudemos assistir à mesma cena já vivida em tantas farras boas na noite recifense: “Fernando, não corra tanto!” E lá, ele tinha a seu favor um argumento irrefutável: “Coia, se eu baixar a velocidade, serei multado!”
Chez Socorro/Fernando, o casal dormiu no quarto das três meninas (Marina já existia) e nos cedeu a cama de casal. Dia seguinte, depois de uma volta pela cidade e uma visita à Universidade, Fernando fez questão de mostrar ao galego apreciador da boa comida, um mercado só de embutidos, as maravilhosas salsichas alemãs…
Ainda ouço ecos da fala do Galo Véio (Fernando é galo no horóscopo chinês), sempre com o humor em alta, com a risada irreverente. A cada amigo que se vai, a gente vai morrendo um pouco, até que chegue nosso dia. Mas vamos vivendo com alegria, que é a melhor homenagem que podemos prestar ao recifense mais recifense que conheci: Fernando Barbosa.
Valeu, amiga Teresa. Fernando Barbosa foi uma grande figura humana, das melhores e mais nobres que já conheci. E como durou! Chegou a nos dar uma ilusão de perenidade…
Teresa, bem bonito esse obituário do seu amigo Fernando Barbosa. Como disse a você, só protesto contra o título, prevendo assim a morte de todos os octogenários…rsrs