As grandes cidades são quase que naturalmente ruidosas. Aliás, outro dia, um colunista registrou que Nova York é dez vezes mais barulhenta do que São Paulo, o que não deixa de ser consolador para os ouvidos nacionais. Abstraindo os aspectos culturais, logo constatamos que metrópoles e megalópoles são máquinas de produzir ruídos: há sempre algum reparo a ser feito pela prefeitura, sempre um prédio em obras, sempre carros e máquinas por toda parte, sempre sirenes que alarmam e pedem passagem, sempre eventos e festas, etc., etc. É como se diz: não dormem! Se não houver um zelo público pelo silêncio, adeus sossego: os ruídos como uma maré montante invadem todos os espaços, inclusive aqueles em que o próprio poder público rotula como “áreas de silêncio”, onde não se deve buzinar. Ao fim e ao cabo, todos nós ficamos como aquele sapo da anedota que, sem se dar conta, vai de uma amigável água fria à fervura que vai matá-lo.

Historiador do silêncio, o francês Alain Corbin (1936) registra que já no século XVII, “[…] quando o mundo exterior se afasta do silêncio”, Bossuet (1627–1704) “[…] enfatizou repetidamente em suas obras a grandeza e necessidade do silêncio”. Pelo jeito, com exceção das ordens monásticas, o mundo não deu ouvidos ao grande orador. Depois, como se sabe, na esteira da Revolução Industrial, vieram as máquinas com seus ferozes ruídos. Como já foi observado, hoje a tecnologia está a nos dever máquinas mais silenciosas. Nesse aspecto, os carros elétricos parecem ser um inegável avanço, assim como nossos computadores se comparados às ruidosas máquinas de escrever. Por outro lado, aeronaves e britadeiras continuam a rachar céus, asfaltos e tímpanos…

Vários autores, dentre eles Umberto Eco, são unânimes: o silêncio será a cada dia um bem mais precioso e, por isso mesmo, um luxo, algo só para os muito ricos. Como todos sabem, há hotéis que já incluem o silêncio entre os seus atrativos. Por falar em rico, no início do século XX, o abastado escritor Marcel Proust que, além de celebremente asmático, também era muito sensível a ruídos, forrou seu quarto com cortiça para bem se concentrar na redação de seu colossal romance “Em busca do tempo perdido”. Não satisfeito, queixou-se, nessa obra-prima, logo ele que amava e exaltava a música, do piano de um vizinho!…

Recentemente, creio que numa atitude pioneira, a não menos pioneira e peculiar cidade de Aureville, no sul da Índia, pequena no tamanho, mas imensa em seu utópico modo de ser, transformou o seu conhecido silêncio em “patrimônio cultural e espiritual”. É o que informa matéria de 02 de abril do portal Radar do “Correio Braziliense”, onde se lê também que lá, naquela jovem e planejada urbe oriental, “o silêncio é praticado coletivamente em escolas, centros culturais, cafés e até nas vias públicas”; um silêncio “tratado não como imposição, mas como ‘cultura viva’, nutrida pelo coletivo”.

O exemplo de Aureville, ainda que empalidecido por um mundo de um barulho literalmente ensurdecedor, lembra-nos que já passou da hora de praticarmos uma arquitetura “silenciosa” e de darmos ao silêncio uma voz política no urbanismo de nossas cidades. Não devemos naturalizar nenhuma poluição, muito menos a sonora. Aprendamos com a coruja, o “pássaro de Minerva” e da sabedoria, que, apesar de piar, chirriar e “rasgar mortalha”, é considerado o mais silencioso dos animais.