Trump - Demencia

Trump – Demencia

Mundo muito estranho este. O magnata Trump, à frente do maior país capitalista do planeta, joga pedras no capitalismo global, ameaça a globalização, e quem sai na defesa do sistema é o presidente da China, Xi Jinping, secretário geral do Partido Comunista Chinês. Os comunistas tentam salvar o capitalismo da estupidez do mega capitalista com a desastrada e destrutiva guerra tarifária. Na sua obsessão nacionalista e protecionista, Trump ignora que a globalização, com a intensa integração da economia mundial, é o estágio mais avançado do capitalismo, que viabilizou ciclo de expansão capitalista recente, que beneficiou, em muito, os Estados Unidos. Xi Jinping, ao contrário, sabe que o desenvolvimento da China das últimas cinco décadas foi possível apenas porque o país se incorporou à OMC-Organização Mundial do Comércio, e intensificou as relações comerciais em larga escala. Atualmente, a China é o maior exportador de bens e serviços do planeta, e o principal parceiro comercial de 120 países de todos os continentes.

Quando usa e abusa das tarifárias alfandegárias, Trump pretende trazer de volta aos Estados Unidos a indústria que se globalizou. As multinacionais, grande parte delas com sede no território estadunidense, organizam a produção em escala mundial, aproveitando as vantagens locacionais de cada país na oferta de partes e componentes. Isso é o que economistas chamam de cadeias globais de valor, que vão além da intensificação das trocas comerciais entre os países para uma integração mundial da produção, de modo que cada produto final resulta da montagem de vários itens e componentes produzidos em vários países. Dois exemplos para compreender melhor a estupidez de Trump.

A Nike é uma multinacional estadunidense, com sede no Oregon, que se destaca como a maior fornecedora mundial de calçados e vestuário esportivos. A produção dos calçados e vestuário da empresa está distribuída em vários países do mundo, com destaque para a China, o Vietnã, a Indonésia e outras nações asiáticas. Embora os Estados Unidos sejam um grande consumidor dos seus produtos, a Nike prefere confeccionar o tênis onde o custo de produção é mais baixo, tão mais baixo que é vendido nos Estados Unidos por um preço bem inferior ao que conseguiria se produzisse internamente. Segundo estimativas, 50% dos tênis da Nike vendidos no Estados Unidos são produzidos no Vietnã, país que Trump está penalizando agora com altas taxas tarifárias. Ele quer que os tênis sejam produzidos nos Estados Unidos. A Nike não quer. 

A Apple, multinacional com sede na Califórnia, é talvez o modelo mais acabado de integração global em torno de um produto, o Iphone, com inteligência e gestão, componentes e insumos distribuídos em diversos países, que são reunidos e montados fora da sede da empresa (a Coreia do Sul fornece os displays, os microchips são desenvolvidos no Japão, interfaces de semicondutores são holandeses, e outros componentes são da Suíça, da própria China e até dos Estados Unidos). Esta distribuição territorial dos componentes aumenta a eficiência e eleva a rentabilidade geral da empresa. A China é responsável por cerca de 90% da montagem final dos Iphones vendidos no mundo, mas os sócios norte-americanos da empresa se beneficiam dos baixos custos de produção no grande país asiático e da apropriação dos valores concentrados nos elos nobres da cadeia global de valor. 

Nos dois casos, Nike e Apple, a parcela do processo produtivo geral com maior valor agregado está concentrada nos Estados Unidos, precisamente onde se localizam os elos mais relevantes da cadeia global de valor, a inteligência, a tecnologia, o design e o marketing. Quanto mais elas consigam reduzir o custo da produção com a montagem final em países como China e Vietnã, maior o lucro total e a parte que vão acumular nos elos nobres da cadeia de valor. Por isso, à Nike e à Apple não interessam restringir as importações dos seus produtos confeccionados fora dos Estados Unidos, nem têm vantagens em trazer a produção para o território estadunidense, porque teriam um custo muito maior para repassar ao consumidor final e, provavelmente, poderiam perder clientes. O que o estúpido presidente dos Estados Unidos não sabe ou ignora é que a principal fonte de lucro da Nike e da Apple não está na confecção final dos produtos na China ou no Vietnã. As etapas mais rentáveis do processo de produção de tênis e Iphones reside na concepção, no desenvolvimento tecnológico, no design, no marketing e outros componentes nobres do processo produtivo.  

Estas duas grandes empresas são apenas exemplos da intensa integração comercial e econômica das últimas décadas, no processo de globalização, construído em base aos acordos da Organização Mundial do Comércio, que levou à formação das vastas cadeias globais, elevando a eficiência e a lucratividade geral dos negócios. Cada produto que sai de uma fábrica organiza e monta uma grande quantidade de serviços (concepção, tecnologia, design e marketing), de matérias primas e suprimentos provenientes de múltiplos países. Quando, ao longo de várias décadas, parte das grandes empresas dos Estados Unidos (e da Europa) transferiram a manufatura para países de menor desenvolvimento, aumentaram a lucratividade geral e ainda concentraram as etapas que mais agregam valor ao produto. 

Os Estados Unidos terão que pagar um preço muito alto por esta estupidez de Trump: retração da economia e inflação, além da profunda desorganização no caso, de resto improvável, de uma transferência de volta, para os Estados Unidos, das unidades produtivas distribuídas no planeta e integradas mundialmente. Como os Estados Unidos são responsáveis por 25% de todas as trocas comerciais do mundo, uma crise na economia estadunidense desorganiza o comércio mundial e quebra as cadeias globais de valor, provocando um movimento combinado de inflação e retração econômica. Na verdade, a simples incerteza que decorre das decisões voluntariosas e erráticas de Trump já é suficiente para provocar uma redução nas decisões de investimentos, e mesmo de contratos e negócios internacionais, além da desconfiança e instabilidades no sistema financeiro.  

A escalada desta guerra tarifária de Trump – com desdobramentos cambiais e financeiros – levará os dois gigantes a afundarem abraçados, levando juntos todo o arcabouço da economia mundial formatada ao longo de várias décadas. O comércio mundial pode entrar numa profunda desorganização: as cadeias globais de valor travam e o suprimento de insumos e serviços pode colapsar. E, no caso de disputa cambial e de desvalorizações dos títulos da dívida dos Estados Unidos, o mundo pode viver uma crise financeira pior do que a que tivermos em 2008. A arrogância do presidente dos Estados Unidos pode levar ao desmonte da economia mundial, um retrocesso dramático da globalização, com uma corrida, nefasta e arcaica, em busca de autossuficiência das nações. Parece que Trump quer mesmo empurrar o mundo de volta às primeiras décadas do século passado, na contramão da História, que vive um impulso acelerado de inovação tecnológica e digitalização econômica que não cabe no modelo do magnata do mercado imobiliário. Estranho que seja o comunista Xi Jinping quem pode salvar o capitalismo e a economia mundial.