
Celular e desemprego
Qual é o país que tem 45% dos habitantes vulneráveis e dependentes da ajuda do Estado para sobreviver e, no entanto, a esmagadora maioria da sua população tem um smartfone e utiliza com desenvoltura o pix como meio de pagamento? Este paradoxo se chama Brasil. Um estranho país que passou por tantas e tão profundas transformações, nas últimas décadas, que se tornou um estranho, é totalmente desconhecido pelos partidos e políticos que devem tomar decisões para lidar com os problemas do presente e prepará-lo para os desafios do futuro. Os políticos formados no século XX se movem e atuam como se nada tivesse mudado na organização econômica, na estrutura social e demográfica, nas tecnologias e nas relações de trabalho, e nos valores e costumes. o que é mais preocupante quando se trata do presidente da República e do seu partido, pensando e formulando políticas para um Brasil que não existe mais. Como também não existe mais o cenário internacional que conheceram no passado, totalmente transformado por novas configurações geopolíticas e pela globalização e a aceleração das inovações tecnológicas.
O Brasil desta segunda década do século XXI é um país envelhecido e altamente urbanizado (87,4% dos brasileiros vivendo nas cidades), socialmente fragmentado e altamente conservador, muito pobre e desigual, modernizado economicamente e integrado à economia mundial. Entretanto, como disse o economista Mansueto de Almeida, “o Brasil envelheceu antes de ficar rico”, e continua envelhecendo rapidamente; em 2010, os brasileiros idosos (65 anos e mais) eram 7,4%, saltando para 10,9%, em 2022, tendência que deve persistir nas próximas décadas. O resultado será cada vez menos trabalhadores ativos para manter os inativos, contendo qualquer expectativa de crescimento econômico, exceto se houver um aumento relevante da produtividade do trabalho.
Cerca de 95 milhões de brasileiros (45% da população brasileira) são considerados pelo governo como “grupo vulnerável e/ou prioritário para acesso e usufruto” da assistência, dependendo de transferência de renda para sobreviver. Só o Bolsa Família beneficia 20,86 milhões de famílias (48 milhões de pessoas se forem consideradas 2,3 pessoas por família). Podemos comemorar a abrangência dos programas de assistência social em implantação no Brasil? Sim, mas devemos mesmo é lamentar que o país tenha tantos brasileiros incapacitados para a geração da sua própria renda, e dependentes do Estado para a sua sobrevivência, lamentar o enorme desperdício das capacidades humanas destes brasileiros. E se preocupar com a falta de perspectiva de toda uma geração de brasileiros, e com o elevado volume de recursos públicos destinados à assistência social, recursos que faltam para projetos e investimentos estruturadores de mudança, como a educação. O Brasil é um país de semianalfabetos – quase 30% da população de 15 a 64 anos não têm capacidade de aplicar habilidades de leitura, escrita e matemática em tarefas cotidianas – e de jovens despreparados para o futuro, quando apenas 5% dos estudantes que terminam o ensino médio nas escolas públicas têm proficiência em matemática. Mais de dez milhões de brasileiros jovens, de 15 a 29 anos, não trabalham nem estudam (21% da população nesta faixa etária) evidenciando um enorme e inaceitável desperdício de habilidades humanas que, além do mais, alimenta o crime organizado no Brasil.
Paradoxalmente, neste país semianalfabeto, cerca de 88% das pessoas de 10 anos e mais têm celular, a grande maioria sendo smartphones, e 76,4% dos brasileiros utilizam o pix como meio de pagamento, formas mais avançadas de digitalização da sociedade. O smartfone transformou a sociedade e a comunicação entre as pessoas, substituiu as formas de organização social pela interação virtual (whatsapp e Instagram), territorialmente dispersa, concedendo um poder excepcional aos chamados “influencers”, as redes sociais dando voz a “uma legião de imbecis”, como disse Umberto Eco. A velocidade e amplitude da propagação dos smartfones provocou também uma mudança forte nas relações econômicas e de trabalho – home office, transporte por aplicativo, ifood, Airbnb, ecommerce – novos negócios que se propagam na vida comunitária, incluindo cerca de metade da população ocupada trabalhando na informalidade. Este é um dos grandes paradoxos do Brasil: uma sociedade digital com quase metade dos brasileiros sobrevivendo de transferência de renda, todos com smartphone e pix e fora do mercado de trabalho, principalmente pelo baixo nível de educação e qualificação.
A sociedade está fragmentada socialmente, e não apenas pela desigualdade de renda e de escolaridade, com um pequeno segmento de brasileiros altamente educados e integrados ao mundo globalizado e uma massa da população sem educação e sem acesso aos serviços públicos, com esmagamento da classe média e a emergência de novos ricos. Fragmentada, também, nos valores e comportamentos, resultado combinado do avanço das igrejas evangélicas, por um lado, e a emergência do identitarismo, por outro. Tem havido uma reformulação radical das pautas políticas, que se deslocam dos interesses sociais de classe ou território (favelas e comunidades pobres) para as lutas identitárias, focadas nos direitos civis de forte conteúdo liberal.
O Brasil do século XXI mostra também uma importante mudança dos valores, das crenças e dos comportamentos, decorrente, em grande parte, da acelerada penetração das igrejas evangélicas na sociedade brasileira, principalmente nas comunidades de menor renda. Os dados oficiais (IBGE) mostram que 35,8% dos brasileiros são evangélicos (em 2010 eram 22,2%), nas últimas décadas. De acordo com Bruno Paes Manso, surgiram cinco mil novos templos evangélicos, de diferentes orientações, a cada ano (A Fé e o Fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI). Embora a bíblia seja a mesma base religiosa, os pentecostais têm valores e comportamentos radicalmente diferentes dos católicos, sendo mais afeitos ao Velho Testamento e propagando a Teologia de Prosperidade Individual, carecendo do Estado e se apoiando na fé, na obediência aos mandamentos de Deus, na convivência no templo, e nas preces do pastor e no dízimo.
Em parte, como resultado da expansão do neopentecostalismo nas comunidades, o Brasil tornou-se um país muito conservador nos valores e comportamentos, coincidindo com a emergência de uma pobreza empreendedora, que promove uma grande efervescência econômica nas favelas. Conservador nos valores e costumes, o Brasil apresenta uma clara inclinação para a direita no espectro político e ideológico. Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa DataSenado, 29% dos brasileiros se consideram de direita, quase o dobro daqueles que se declaram de esquerda (15%); entre os evangélicos, o percentual de direita sobe para 35% (esquerda cai para 8%). O outro lado deste Brasil é constituído por grupos identitários com valores e comportamentos radicalmente distintos, expressando outra fragmentação da sociedade brasileira em múltiplas identidades, capturando os discursos e as pautas políticas da esquerda tradicional. A divisão do Brasil entre os conservadores evangélicos e os radicais identitários é responsável direto pela polarização política do Brasil: os lulistas agarrados aos movimentos identitários, e os bolsonaristas com base sólida na direita evangélica.
O crime organizado é outra característica do Brasil atual, com diferentes grupos de traficantes de drogas e milicianos dominando territórios das grandes cidades e penetrando no interior e cidades médias, formando quase um Estado autocrático em pedaços do solo brasileiro, distribuindo renda do crime, formando reinos isolados nas cidades e impondo sua autoridade violenta sobre as comunidades. Em 2019, traficantes e milicianos controlavam mais de 75% dos territórios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (www.anf.org.br). Além da expansão territorial, do poder de fogo e do enriquecimento, o crime organizado vem entrando nas atividades legais, que servem para aumentar a renda dos negócios ilegais e para lavar o dinheiro sujo. A face mais delicada do crime organizado se manifesta na promiscuidade com instâncias políticas, policiais e judiciárias, com corrupção e, mesmo, penetração concreta nas instituições. O curioso fenômeno de conversão ao Evangelho de membros e líderes do crime organizado, alguns deles ordenados pastores1, concede um fundamento religioso às suas atuações nas comunidades. De acordo com Paes Manso, no conjunto de favelas denominado de Complexo de Israel, o chefe do tráfico conhecido por Peixão, “resgatou o sagrado e se apropriou de sua linguagem e símbolos, que eram cada vez mais populares entre os pobres os defensores de uma nova ordem à base da violência”2.
Os brasileiros não conhecem o Brasil, os políticos não percebem a complexa realidade brasileira do século XXI e disputam espaços num Estado fragilizado e desestruturado, do que são, em grande parte, responsáveis. A propostas e iniciativas dos governos, especialmente o governo do presidente Lula da Silva, estão voltadas para um Brasil que não existe mais, de modo que não convencem o eleitorado e tratam as distorções e estrangulamentos com gambiarras. Pior, tem que lidar com uma crise fiscal que compromete a capacidade de investimentos públicos com as instituições da República, igualmente fragmentadas e dominadas por interesses mesquinhos e manifestações populistas. O Executivo contido pelas restrições fiscais e espremido pela ganância do Legislativo, um Congresso que quer governar e se apropria de uma parcela significativa das despesas discricionárias do governo, e o Judiciário que se mete a governar e legislar, aproveitando supostas brechas e indefinições na Constituição. Sem conhecer o Brasil e sem capacidade de governar, o país vai sendo empurrado à deriva, amarrado por um emaranhado de gambiarras. É urgente que os brasileiros se concentrem numa reflexão e análise profunda da realidade brasileira para orientar as políticas públicas consistentes com as grandes contradições e os desafios do futuro.
1 Ver a respeito “A fé e o fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI de Bruno Paes Manso.
2 Idem
Totalmente verdadeiro e muito triste. E o panorama mundial não está exatamente ajudando…