Sempre quis ficar num apartamento aqui na região de praça Liszt, em Budapeste. Mas nunca encontrei nada a preço que pudesse pagar sem dor na consciência. Na maioria das vezes, tratei de me hospedar pelas bandas ribeirinhas de Peste, em homenagem a meu primeiro endereço, há 40 anos, na rua Gogol. Mas dessa vez consegui o velho intento. Pois tendo desembarcado na estação de Nugayty tarde da noite, vindo de Praga, resolvi caminhar rumo à Andrássy, a avenida mais parisiense da Hungria, apostando que o coronavírus talvez tivesse derrubado os preços até nas zonas mais elegantes da cidade.
A primeira tentativa foi infrutífera porque o Radison ainda estava caro demais, com preço apontando para os 20 mil forints a diária, ou 60 euros, o que foge bastante ao orçamento de quem passa metade da vida em hotéis. Era tarde, muito tarde para os arranjos de Airbnb, e só me restava aproveitar a noite cálida e puxar minha malinha, indiferente ao apelo dos bêbados e às provocações dos jovens embriagados, cuja loucura ainda sabe respeitar quem não está para gracejos. Os húngaros são um pouco broncos, meio ilhéus, na verdade, mas, no geral, bastante respeitosos. Tampouco gostam que lhes pisemos nos calos.
Foi então que cheguei ao Medosz, onde me deram um quarto confortável, com uma das melhores vistas que já tive em tantos anos. Isso porque abre-se diante da janela uma esplanada de meio quilômetro de praças, a segunda delas cercada de restaurantes simpáticos – onde despontam dois não-turísticos que valem muito a pena-, e, mesmo que a primavera só chegue oficialmente na próxima semana, já se descortinam árvores de copa quase verde e alamedas vazias – apenas percorridas por cães buliçosos e seus donos. Que há algo de anormal no ar, isso não posso negar. E é claro que tem a ver com o coronavírus.
No dia seguinte à chegada, saí com a artista plástica Judith Klein e seu marido, também judeu, chamado Jörgy. Passamos a tarde conversando sobre o ano em que eles nasceram, que foi o de 1944. Os pais dela escaparam de Auschwitz porque um entroncamento de trem tinha sido bombardeado na Eslováquia, dificultando as ligações com o leste. Como a guerra chegava ao fim, foram para um campo de trabalhos na Áustria onde ela nasceu com 1,5 kg. Jörgy não foi circuncidado por precaução, e o pai se salvou porque dirigia caminhão para o exército e estava na Ucrânia. Com o tempo, virou cidadão húngaro devotado ao regime que entrou em vigor.
Mais do que o grande afresco que começava em Budapeste e percorria Israel e até o Brasil, eu me atinha ao fato de que logo que a mesa se desfizesse, eu teria que encarar a dura realidade. O coronavírus está à minha espreita e não devo ter passado longe dele. Onde já estive em 2020? Pela ordem, na Espanha, Sérvia, Romênia, França, Brasil, Turquia, Áustria, Eslováquia, República Tcheca e Hungria. Melhor nem contar, não é? Tanto melhor que o passaporte só registre a metade. Não sei se tenho grande chance de sobreviver ao coronavírus. Dizem que mata velhinhos. Sou um deles, aos 61 anos? Não. Mas e a asma? E a hospitalização – eu que não soube o que é isso até hoje?
Dizem que as UTIs do mundo todo não bastarão, e que a ventilação mecânica do paciente tem que começar no primeiro dia da internação, e pode durar até duas semanas. É aí que acho que morro. Nunca fui a uma UTI. Pode-se ler lá dentro, pelo menos? Pelo meu cronograma de trabalhos, tudo correndo bem, só chego ao Brasil no dia 25. Daqui até lá, é capaz de já terem bloqueado o acesso de voos da Europa ao país. Como volto via Turquia, o que só agrava a situação pois é vizinho do Irã, me mandarão para uma indigência em Istambul. Posso sempre tentar fugir para ir ver Pascale em Fethiye, mas já deliro. Será o estado febril?
Por outro lado, consolo-me pensando que esse tipo de morte não combina lá muito comigo. Do que Fernando morreu? De corona! É muito banal. Francamente, é quase aviltante. Para quem já sonhou em morrer trocando tiros nas barricadas das ruas do Recife, morrer desse vírus é pouco condizente com uma vida de certo charme, que sempre se pretendeu épica e autoral. Corona? Parece mais um choque sob a ducha Corona, um escorregão no box do chuveiro, ou então um porre da cerveja dessa marca mexicana – que, aliás, tem gosto de urina e, de tão ruim, bebe-se com limão.
Estou tentado pensar no lado bom, nessa amanhã de sexta-feira em que espero o aval de João Rêgo para mandar esse desabafo eletrônico, que pode ser o último antes da internação iminente. Por que será que estou tossindo tanto? Foi porque saí sem agasalho ontem? Tudo isso pelo menos dá vazão a meu lado repórter – a vocação em que nunca apostei. Se morrer, saibam que tinha uns planos. Lançaria um livro em abril, que está na editora, pronto para rodar, e outro em 2021 – este um romance -, a que eu gostaria de ver associado meu nome depois que morresse decentemente, de preferência à bala, e não de gripe. Será que estou deprimido? Um pouco, apesar de amar a incerteza.
No mais, saibam todos que gostei da vida que tive. Nunca poupei dinheiro para comprar badulaques e sempre tive horror ao império das coisas, como é sabido. Gostei de Garanhuns, curti o Recife, percorri várias vezes a Terra – como só uma ínfima população de planeta fez -, namorei mulheres lindas, que me deram muito mais do que eu merecia. Foi a elas que me dediquei, em primeiro lugar. Depois ao trabalho de estrategista internacional, de que fui um apóstolo abnegado, e, por fim, aos prazeres imateriais. Queria ter ficado por aqui mais uns 30 anos, mas não depende só de mim. No enterro, se houver, nada de lágrimas, mas Spartacus, de Khachaturian, e boa bebida.
É certo dizer que enquanto há vida, há esperança. Amanhã vou tentar chegar à Inglaterra, de onde tudo pode ficar mais fácil. Importante é sacudir a poeira do pessimismo. Dessa síndrome de Chernobyl com Fukushima. Dessa sensação que deve ter acometido os pais de György e Judith quando Adolf Eichmann se instalou aqui e resolveu “limpar” a cidade. Que o coronavírus tenha o mesmo destino que ele. E que o derrotemos impiedosamente. Quanto ao chinês que resolveu tomar um chá de asa de morcego, já nada podemos fazer. Pela primeira vez na vida, quero sair de Budapeste. É isso o que me incomoda mais que tudo.
Uma delícia ler os artigos do grande Fernando Dourado