A vitória de Gabriel Boric nas eleições presidenciais do Chile tem sido comemorada como um passo significativo na consolidação da democracia e de mudanças sociais no país andino, com desdobramentos em toda a América Latina e, particularmente, no Brasil. A derrota da direita no Chile renova a confiança dos democratas brasileiros no fim próximo do desgoverno de Jair Bolsonaro. Além dos ventos de esperança que vêm dos Andes, as eleições do Chile oferecem uma importante lição aos brasileiros: a civilidade política de adversários, o respeito às decisões do eleitorado, e a disposição manifesta de negociação e entendimento político, mesmo de grandes adversários. Civilidade política que parece esquecida por quase todos os líderes políticos do Brasil, que carregam de ódio e arrogância as divergências políticas e ideológicas.
Citado como um político de extrema direita, com certo saudosismo da violenta ditadura de Augusto Pinochet, o candidato da Frente Social-Cristã, José Antônio Kast, está muito longe de ser um troglodita alucinado, como o presidente do Brasil. Num gesto de civilidade política esquecida pelos políticos brasileiros, com a confirmação da vitória do seu adversário, Kast escreveu no seu twitter: “Acabei de falar com Gabriel Boric e parabenizá-lo pela grande vitória. A partir de hoje é o Presidente eleito do Chile e merece todo o nosso respeito e colaboração construtiva. Chile em primeiro lugar”. Difícil imaginar o derrotado nas eleições presidenciais do próximo ano no Brasil fazer um aceno semelhante ao vitorioso.
Civilidade foi também a tônica do primeiro discurso de Boric, depois de confirmada a sua vitória, com uma mensagem aos seus adversários na campanha eleitoral. “Quero agradecer a todos os candidatos que participaram desta eleição, porque finalmente fazemos democracia juntos e precisamos de cada um. A Yasna Provoste, Sebastián Sichel, Marco Enríquez-Ominami, Franco Parisi, Eduardo Artes e José Antonio Kast. Sim, também a José Antonio Kast!”. Difícil imaginar semelhante declaração do candidato vitorioso nas eleições presidenciais do próximo ano no Brasil. Mas, convenhamos, ninguém terá como agradecer ao provável derrotado Bolsonaro que, desde agora, questiona os resultados do pleito eleitoral.
Ao mesmo tempo em que abre as alamedas para o fortalecimento da democracia e as mudanças sociais da América Latina, o jovem presidente chileno manda um recado claro e impactante contra o populismo que ronda o continente. “Nesta noite de triunfo repito o compromisso que assumimos ao longo da campanha: vamos ampliar os direitos sociais e o faremos com responsabilidade fiscal, o faremos ao mesmo tempo em que estaremos cuidando da nossa macroeconomia. Faremos bem, e isso permitirá melhorar as pensões e a saúde sem ter que voltar no futuro”.
E, no gesto de grandeza incomum aos políticos brasileiros, Boric se apresentou como herdeiro de uma história e de avanços realizados por vários outros políticos e governos na história do Chile depois da ditadura. “Eu sei que a história não começa conosco. Sinto-me herdeiro de uma longa trajetória histórica, a daqueles que, de diferentes posições, incansavelmente buscaram a justiça social, a expansão da democracia, a defesa dos direitos humanos, a proteção das liberdades. Esta é a minha grande família, que gostaria de ver reunida nesta fase que agora iniciamos”.
No seu discurso, Boric defendeu o diálogo e a construção de acordos políticos, como condição para a governança. “O progresso, para ser sólido, deve ser fruto de amplos acordos. E que, para durar, devem ser sempre passo a passo, graduais, para não inviabilizar ou arriscar o que cada família conquistou com seu esforço”, afirmou no seu primeiro discurso. O novo presidente vai precisar de muita negociação para aprovação das suas propostas de reforma no sistema previdenciário, no modelo de educação e de saúde, e de aumento da carga tributária. A frente “Aprueba Dignidad”, que o elegeu, terá apenas 24% dos deputados, enquanto o grupo conservador do atual presidente Sebastián Piñera, com a maior bancada, contará com 34% dos representantes parlamentares. E, embora não tenha a fragmentação partidária do Brasil, provavelmente Boric vai ter que recorrer a um sistema de “presidência de coalizão” semelhante ao brasileiro. O Congresso conta com 27 partidos, mas alguns deles são agremiações de peso e com princípios e ideologias, o que facilita a formação de uma base parlamentar.
O reformista Boric destaca ainda que as mudanças devem ser graduais para serem duradouras, rejeitando rupturas e medidas bruscas e drásticas que podem provocar desorganização de estruturas e acentuadas disputas distributivas. Reformismo responsável que facilita a construção de uma base política para viabilizar as mudanças econômicas e sociais. Se o Chile já tem os melhores indicadores econômicos e sociais da América Latina, apesar do aumento recente das desigualdades, o governo de Gabriel Boric pode sinalizar para o subcontinente como um modelo de mudança com estabilidade e responsabilidade.
Um belo artigo de Sérgio Buarque, sempre coerente com suas profundas convicções democráticas. De fato está sendo bem bonita a transição chilena, com civilidade e respeito, também de parte do Presidente Sebastian Piñera, quando afirma que no período que lhe resta ouvirá o Presidente recém-eleito. Que a história de fato seja usada como aprendizado, para que o jovem Presidente Boric consiga conter e orientar para um caminho construtivo os ultrarradicais do seu próprio campo que, lamentavelmente, Salvador Allende em seu tempo não conseguiu controlar.
Querido Sérgio!
Foi tão bom ler o que você escreveu neste fim de ano tão triste para nós brasileiros…
Continuo admirando sua serenidade e coerência.
Feliz Ano Novo!
Grande abraço afetuoso, de minha parte e de Vânia (nunca esqueceremos aquele regabofe em sua casa, que nunca retribuímos…), extensivo a Ester e a todos que você ama.
Luciano