Helga Hoffmann

Porque será que o Comitê de Direitos Humanos da ONU lembrou que esta semana era de registro de candidaturas presidenciais no Brasil? A ONU, depois de vários anos de esforço e muitas reuniões em que se envolveu o Enviado Especial da ONU para a Síria, o ítalo-sueco Staffan de Mistura, pouco influiu para conter na Síria as violações de direitos humanos que levaram a uma crise de refugiados na Europa. A ONU ainda não conseguiu interferir para coibir as tristes violações de direitos humanos na Venezuela, embora o ACNUR esteja a ajudar no acolhimento aos refugiados nos países vizinhos, inclusive Brasil.

É talvez injusto lembrar essas ditaduras escancaradas pelos fugitivos para começar a analisar uma suposta interferência da ONU no Brasil, em regime democrático com vigência e cumprimento da Constituição e das leis. Mas nesse momento a polêmica sobre o comitê da ONU que teria pedido que a candidatura de Lula fosse registrada para as eleições de 7 de outubro é tão insensata que é preciso introduzir um senso de proporções. E relembrar o quanto é enganosa a pretensão dos que agora, de repente, às vésperas das eleições, querem que se ignore a legislação vigente no país para atender a uma manifestação de peritos falsamente apresentada como “recomendação da ONU”. Que ONU? Que parte da ONU?

Esses peritos, que integram o Comitê de Direitos Humanos, são formalmente parte da complexa estrutura da ONU para defesa dos direitos humanos, que vai da difusão dos princípios de direitos humanos até sua aplicação concreta. Mas é preciso ver como esse Comitê de Direitos Humanos se insere na ONU e qual é a competência desse Comitê, do qual só agora o país tem notícia.

No site da ONU, especificamente no site do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, encontrava-se (pelo menos em 17 de agosto de 2018 estava lá), uma “Nota de informação sobre o Comitê de Direitos Humanos”, que vale a pena transcrever, pois mostra de imediato o quanto é facciosa a interpretação de que a manifestação do Comitê obriga a participação de Lula nas eleições: “O Comitê de Direitos Humanos da ONU pediu ao Brasil tomar todas as medidas necessárias para garantir que Lula possa ter e exercer seus direitos políticos enquanto preso, como candidato nas eleições presidenciais de 2018. Isso inclui ter acesso adequado à mídia e a membros de seu partido político. O Comitê também pediu ao Brasil que não o impeça de concorrer nas eleições presidenciais de 2018 até que tenham se encerrado seus recursos nos devidos procedimentos legais. O nome técnico deste pedido é “medidas interinas” e se refere à sua queixa individual pendente que está diante do Comitê. Esse pedido não significa que o Comitê já tenha verificado uma violação, mas sim, é uma medida urgente para preservar os direitos de Lula, pendente da consideração do mérito [da queixa], que ocorrerá no próximo ano.

É importante notar que embora esta resposta esteja sendo dada através do secretariado do Alto Comissariado para Direitos Humanos, esta é uma decisão do Comitê de Direitos Humanos, composto de especialistas independentes. Esta resposta deve ser atribuída ao Comitê de Direitos Humanos.” (minha tradução do inglês)

De imediato, destaco: 1. o Comitê não verificou violação de direitos humanos, mas pede suspensão provisória de leis vigentes no país; 2. o Alto Comissariado para Direitos Humanos explicitamente evitou endossar o pedido do Comitê; 3. o Comitê não mostrou que os dispositivos legais que limitam a atuação política e a elegibilidade do ex-presidente Lula ferem ou contradizem algum dispositivo da Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo monitoramente é função do Comitê.

Curiosamente, no mesmo instante e sem qualquer exame, a nota foi interpretada como “decisão obrigatória e de efeito imediato” pelos partidários do candidato mencionado pelo Comitê, como apareceu em 18 de agosto em letras garrafais na notória agência de notícias “Brasil 247”, transmitindo palavras de Paulo Sérgio Pinheiro, conhecido militante dos direitos humanos, que acrescentou que em caso de descumprimento caberia ao Brasil “sanção moral” e “má fama internacional”. O entrevistado, que deve conhecer bem a área de direitos humanos da ONU, membro que é da Comissão Internacional Independente de Investigação da ONU Sobre Síria[1], achou necessário explicar que foi “puro acidente” que a “decisão” tenha aparecido às vésperas da decisão sobre o registro das candidaturas, “pois não tem ninguém daqui comandando lá”. Será? “Honni soit qui mal y pense”, já me dizia minha avó, isto é, quando a gente lembra algum mal é porque se é capaz desse mal atribuído a outrem. O comentário de elogio ao Comitê fica ainda mais suspeito quando vemos que, dois dias depois, o ex-chanceler Celso Amorim, famoso arauto das ações lulopetistas no exterior e do trio (junto com Samuel Pinheiro Guimarães e o finado Marco Aurélio Garcia) que pregava a “política externa ativa e altiva”, engrossou o coro e declarou em entrevista que o Brasil tem que cumprir a determinação do comitê ou se tornar um pária global.[2] E agora é o candidato a vice-presidente, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que ataca o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por não ter acatado a “decisão” do Comitê e ter respeitado a Lei da Ficha Limpa. Mesmo depois de já ser conhecido que o Comitê não chegou a se reunir para formar um parecer conjunto e que a nota é produto de apenas dois dos membros do Comitê, continua a orquestração, interna e externa, da tese de que o comentário do Comitê tem que ser acatado pelo Judiciário brasileiro.

Mas afinal que Comitê é esse? Como é que só apareceu perto do prazo final para registro das candidaturas? Antes de mais nada, ele não deve ser confundido com o Conselho de Direitos Humanos[3], que é um órgão intergovernamental de 47 países-membros composto por representantes diretos desses países. Os órgãos relacionados com direitos humanos na ONU são aqueles que derivam diretamente da Carta e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de dezembro de 1948. Essa é uma declaração geral de princípios. Mas ao longo dos anos foram sendo negociados tratados internacionais sobre temas específicos relacionados com direitos humanos. Existem nove ou dez desses tratados ou convenções, e cada uma tem um comitê cuja função é monitorar os compromissos assumidos pelas partes contratantes da convenção. Em geral esses comitês de monitoramento de tratados têm de 10 a 20 membros independentes, eleitos periodicamente.

Esse que emitiu um pedido sobre o condenado preso por crime comum no Brasil é o Comitê de Direitos Humanos, que tem o encargo de monitorar o cumprimento da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Essa Convenção (ou Pacto) tem dois protocolos facultativos, um sobre Queixas Individuais e outro sobre Abolição da Pena de Morte, que não estão necessariamente assinados por todos os países que ratificaram a Convenção. O Brasil é signatário da Convenção desde abril de 1992 e do Protocolo sobre Queixas Individuais desde 2009. Convém anotar que a Convenção, e seu Comitê de monitoramento, não tratam direitos humanos em geral, mas especificamente direitos civis e políticos; isso fica mais claro pela sigla usada em inglês, CCPR (Committee on Civil and Political Rights), possivelmente porque o uso da sigla HRC iria se confundir com “Commission” ou com “Human Rights Council”.

Há dois anos, em 2016, os advogados de Lula entraram com uma queixa ao Comitê, usando o Protocolo de Queixas Individuais, que permite ao Comitê manifestar-se sobre comunicações provenientes de indivíduos que se considerem vítima dos direitos enunciados na Convenção. Já então o mero recebimento de um número de protocolo foi alardeado pelos advogados e ecoado pela máquina de propaganda do PT como “a ONU aceitou a queixa”, em má fé evidente. O Comitê marcou o julgamento da queixa para 2019, e o assunto foi esquecido. Três anos para examinar uma queixa?! Não seria evidência de que o Comitê não levou a sério a tal queixa dos advogados de Lula? Por que logo agora, às vésperas do registro das candidaturas, aparece um pedido do Comitê para que Lula seja registrado pendente do julgamento do mérito em 2019? E aparece um membro do Comitê, o Sr. Olivier de Frouville, falando com as agências internacionais de notícias, algo fora do procedimento regular desse tipo de comitê de especialistas?

O Comitê de Direitos Humanos tem atualmente 16 membros, pois dois de seus membros pediram demissão este ano. Aliás, o fato de um membro do Comitê pedir demissão caracteriza bem a diferença de um órgão intergovernamental, em que o país membro não pode simplesmente pedir demissão. Os membros do Comitê são os seguintes: Tania Maria Abdo Rocholl (Paraguai), Yadh Ben Achour (Tunísia), Ilze Brands (Letônia), Sarah Cleveland (EUA), Ahmed Amin (Egito), Olivier de Frouville (França), Christof Heyns (África do Sul), Yuji Iwasawa (Japão), Bamariam Koita (Mauritânia), Marcia V.J. Kran (Canadá), Duncan Laki (Uganda), Photini Pazartzis (Grécia), Mauro Politi (Itália, vice-presidente do Comitê), José Manuel Santos (Portugal), Yuval Shany (Israel, presidente do Comitê), Margo Waterval (Suriname, relatora do Comitê). O mandado de oito deles expira no fim de 2018, de outros oito, no fim de 2020. Os membros normalmente se reúnem três vezes ao ano e normalmente em Genebra. Nada do que fazem tem caráter vinculante. Não têm a função de juízes internacionais.

Acatar o pedido atual do Comitê relacionado com as eleições de 7 de outubro seria particularmente irresponsável, porque a nota dos peritos ignorou a Lei da Ficha Limpa, o que por si só a invalida, e não pediram qualquer esclarecimento ao governo brasileiro sobre esse suposto descumprimento futuro da Convenção, o que contraria os procedimentos regulares desses comitês de monitoramento. O mais grave é que não mostraram ou explicaram de que modo os dispositivos legais que impedem o registro da candidatura presidencial do ex-Presidente Lula contradizem a Convenção de Direitos Civis e Políticos. E é porque não contradizem. Considerar um candidato inelegível nos termos da Lei da Ficha Limpa, mas aceitar sua candidatura provisória para esperar uma decisão não vinculante de um comitê de peritos daqui a um ano é um despropósito e cria um nível insuportável de insegurança jurídica, de consequências incalculáveis. Seria importante que o governo brasileiro enfrentasse essa campanha deliberada de desmoralização das nossas instituições no exterior, determinando ao Itamaraty explicar a Lei da Ficha Limpa que o Comitê da ONU desconheceu de modo irresponsável.

[1] Registro que até agora nenhum membro dessa Comissão de Investigação conseguiu entrar na Síria.

[2] Em artigo na Folha de S.Paulo, 27 de agosto de 2018, o ex-embaixador Rubens Barbosa deu uma resposta indignada a Celso Amorim, por alienar a soberania do Brasil para defender a teoria de que se arma no Brasil um golpe contra Lula e de que eleições sem Lula são fraude.

[3] Alguma confusão adicional foi gerada pelo fato de que antes o órgão intergovernamental se chamava Comissão de Direitos, substituída pelo Conselho de Direitos Humanos em 2006.