Augusto dos Anjos, em famoso soneto, nos disse que a ingratidão “é uma pantera” e que esta lhe foi uma “companheira inseparável”. Talvez possamos dizer o mesmo da estupidez. Pois bem, no tão breve quanto instigante ensaio “Sobre a estupidez”, de 1937, Robert Musil, o célebre autor de “O homem sem qualidades”, ataca essa fera, tão inseparável da humanidade que, volta e meia, ela própria se multiplica numa escala coletiva e social.
Apreciar o tema, segundo o autor austríaco, já fará pressupor que se é inteligente, mas se achar inteligente já seria sinal de estupidez… Por quê? Musil levanta a hipótese de que “[…] para o mais fraco era com efeito mais inteligente não ser considerado inteligente: sua inteligência poderia representar uma ameaça para o mais forte”. Resquícios dessa esperteza, diz ele, ainda permeiam as relações de aluno e professor, pais e filhos, etc. Ao contradizer o dominador, a estupidez criou a ideia, em moral, de que “[…] uma vontade é tanto mais perniciosa quanto maior for a consciência contra a qual ela age […] Na educação isso se manifesta no fato de um aluno talentoso e insubordinado ser tratado com mais severidade do que aquele que se opõe por obtusidade”.
A estupidez irrita, impacienta, chega a despertar o sadismo, o que leva a se reservar, numa época como a do autor (de “covarde crueldade contra os fracos”), uma atenção especial a tal assunto. Adiante, Musil observa como os humanos “secretamente em seus pensamentos” se veem como inteligentes e bem-dotados, em especial aqueles de “atuação histórica”, leia-se: os poderosos. É gente assim que “diz ou manda dizer” que é “infinitamente inteligente, iluminada, digna, sublime, clemente, escolhida por Deus”. Daí tantos títulos e pronomes de tratamento que preservam, na linguagem, o reflexo dessa atitude: “majestade”, “eminência”, “excelência”, etc. Não por acaso, o ensaísta vai, em seguida, abordar a relação da estupidez com a vaidade, já que entre elas “sempre existiu uma relação íntima”, sim, porque, diz genialmente Musil, “[…] uma pessoa vaidosa causa a impressão de desempenhar menos do que poderia” (o engenheiro Musil não abandona o Musil pensador!).
No tocante à vaidade coletiva ou individual, o escritor nos alerta para o monopólio da virtude e da sabedoria, por muitos que se permitem, enquanto coletividade, aquilo que lhes é proibido enquanto indivíduos (não devemos esquecer que o autor escreve no período de ascensão das massas e do nazifascismo). O viver sem inibições proporciona, por assim dizer, o espetáculo da estupidez. É preciso, como insinua o pensador, uma “temperatura média de inter-relação humana”, na qual se faça bom uso da discrição e do distanciamento, “[…] normas que se encontram em toda sociedade, mais nas primitivas do que nas altamente civilizadas”! À época, como se sabe, estavam no auge os ideais políticos megalomaníacos e, portanto, nada discretos ou modestos.
Todavia, a estupidez é mais que falta de inteligência, conclui Musil, pois “a ideia mais generalizada que temos dela parece ser a da falha nas mais diversas atividades”. A estupidez é, dessa forma, transversal, presente, sob múltiplas formas: nos esportes, nas relações comerciais, nas guerras, etc. Do mesmo modo, guarda uma relação dialética com a inteligência, caracterizando-se mais como uma forma ou um grau de incompetência, de falta de um desempenho satisfatório. Como quer que seja, “Cada um de nós deve rastreá-la dentro de si mesmo, e não somente reconhecê-la em suas irrupções históricas”. É preciso igualmente recorrer à psicologia e examinar o peso dos afetos na emergência da estupidez, sobretudo na estupidez coletiva, que faz de uma sociedade uma espécie de doente mental.
Finalmente, Musil nos indica o melhor antídoto contra a estupidez: a modéstia. A rigor, ao longo de todo o seu ensaio, há, em negativo, como que uma preparação para tal antídoto. A vaidade, a megalomania, a tagarelice supérflua, a desinibição gratuita, a falta de decoro e discrição, a espetacularização do sadismo, tudo vai como que conduzindo ao antídoto da modéstia, sobretudo para que cada um de nós reconheça o quão tem sido, ocasionalmente, estúpido. Como não pensar nas redes sociais, que hoje potencializam todos esses indutores da estupidez? Atualíssimo, o ensaio de Musil parece falar diretamente a nossos dias, quando a estupidez, em mais de uma de suas “irrupções históricas”, mina as relações pessoais e corrói, com dentes afiados, a “madeira torta da humanidade”. Estamos na boca da pantera.
Bela reflexão, Paulo Gustavo, sobre o ensaio de Robert Musil. Por favor, informe-nos onde se encontra publicado esse ensaio.
Obrigado, Teresa.
O ensaio é um livro de bolso da editora Âyiné, de Belo Horizonte, publicado em 2016.
Abraço
Paulo Gustavo
Muito bom, ensaio e ilustração. Curiosa essa ideia da estupidez poder ser usada também como uma maneira de se defender preventivamente de agressões. Mas aí seria esperteza disfarçada de estupides? Como o lobo disfarçado de cordeiro?
Pois é, Helga.
O antídoto é que não me parece à altura, mas não deixa de ser um começo.
Abraço. Obrigado pela leitura.