Corvo no cemitério.

 

Morreu o Cabo Anselmo. Só e desprezado no Interior de São Paulo.

As novas gerações certamente pouco ouviram falar deste nome, mas muitos dos que viveram – como eu vivi – aqueles tempos tenebrosos, certamente ensaiaram um leve sorriso de satisfação – e que Deus nos perdoe se isso for algum pecado.

Pois José Anselmo dos Santos, sergipano de Itaporanga da Ajuda, foi o que há de mais sujo, mais abominável e triste na luta política que se travou no nosso país, a partir do Golpe de 1964: virou um agente infiltrado que denunciava os companheiros de resistência, dentre os quais sua própria noiva, Soledad Barret Viedma. Grávida de quatro meses, ela foi metralhada aqui em Pernambuco pelas forças da repressão, à frente o delegado Sérgio Fleury,que  entrou para a História como um dos mais célebres torturadores dos porões   do DOI/Codi de São Paulo. Foi lá onde assassinaram Vladimir Herzog e outros infelicitados que caíram nas mãos de Fleury, naqueles tristes e malditos anos.

Vamos relembrar aqui um pouco da história (ou prontuário) do Cabo Anselmo, e sua caminhada de herói a bandido. Foi assim:

Anselmo começou a servir à Marinha na  Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia, em 1958, como marinheiro de primeira classe. Mesmo nacionalmente conhecido como “Cabo Anselmo”, nunca passou da patente inicial. Com alguma vocação de liderança, filiou-se à Associação dos Marinheiros e Fuzileiros  Navais do Brasil, e com pouco tempo se tornava Diretor de Relações Públicas da instituição. É bom lembrar que vivíamos os primeiros anos da década de 60 do século passado, e que no Brasil pululavam associações, sindicatos, grêmios, etc.  Proliferavam  também partidos políticos de todos os matizes,  e o Partido Comunista, ainda na ilegalidade, se escondia por trás de várias siglas, ditas “de esquerda”. Não se pode esquecer que ali militavam também agitadores profissionais,  sindicalistas demagogos, aproveitadores da esquerda e da direita.

O Brasil era uma imensa panela de pressão,  que se dividia entre  todos os matizes políticos possíveis e imagináveis. O presidente da República era o indeciso João Goulart, que, assessorado por um Ministério “de esquerda”, pregava uma série de “reformas de base”, que empolgavam os seguidores mais fiéis, mas assustavam o empresariado e, principalmente, a grande maioria das Forças Armadas,   religiosamente apegadas à hierarquia e à disciplina.  Hierarquia e disciplina que Anselmo e muitos militares de patentes inferiores resolveram enfrentar, quando reivindicavam os direitos de votar e de casar, que  lhes eram negados pela corporação. Bom dizer que essa luta de Anselmo e seus companheiros empolgava a juventude que simpatizava com o Governo Goulart e suas “reformas de base” – e que, como seus colegas de farda e de luta registravam, ele era um excelente orador.  De microfone na mão, ganhava fama e notoriedade junto  aos companheiros.

A verdade é que a Associação dos Marinheiros cada vez mais se politizava,  aproximava-se de grupos de esquerda e de movimentos fora da Marinha. Anselmo apoiava abertamente as Reformas propostas pelo presidente e entrou em conflito com o Conselho do Almirantado. Dessa fase, restou uma incógnita sobre Anselmo: ele já seria, naquela época, um espião da CIA, que, pelas mãos do embaixador norte-americano Lincoln Gordon, trabalhava abertamente para derrubar João Goulart. Um agente infiltrado na Marinha a serviço dos EUA.

Mas, verdade ou não, a corda esticava dos dois  lados, e mais cedo ou mais tarde teria de rebentar. A Associação dos Marinheiros teve sua diretoria transferida para lugares diversos, com a finalidade de evitar que se reunisse e continuasse sua pregação contra os chefes. Anselmo tornou-se insubordinado e, numa reunião realizada no Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, (dia 20 de março de 1964),fez graves críticas  ao Ministro da Marinha, o almirante Sílvio Mota, que em resposta decretou a prisão de todos os diretores da Associação e, ao mesmo tempo, a expulsão de Anselmo, já punido várias vezes por indisciplina.

Foi a porta aberta para Anselmo, depois da queda de Goulart,  cair na clandestinidade e aliar-se aos grupos que combatiam o regime militar. Antes disso, na  sede do Sindicato dos Metalúrgicos, também no Rio de Janeiro, Anselmo pronunciou um violento discurso, redigido com ajuda de Carlos Marighela, um dos nomes mais expressivos do clandestino Partido Comunista. E os fatos fugiram de controle: o Ministro da Marinha  colocou  tropa em prontidão rigorosa, exigiu a presença de todos os marinheiros rebeldes em suas unidades, punição para todos aqueles que estiveram presentes no Sindicato dos Metalúrgicos.

O presidente João Goulart foi conivente com os marinheiros e, tentando debelar a crise, nomeou o almirante Paulo Mário da Cunha novo Ministro da Marinha. No dia 30 de março, Anselmo brilhava novamente, na histórica reunião realizada no Automóvel Clube do Rio de  Janeiro,  porta aberta para deposição do Presidente da República. O novo ministro anistiou todos os marinheiros punidos pelo seu antecessor – e tanto o Exército quanto a Aeronautica entenderam  que a coisa passara dos limites. Disciplina e hierarquia nas tropas estavam indo para o “beleléu” . O mau exemplo da Marinha podia atingir o Exército e a Aeronáutica. Se o general Humberto de Alencar Castelo Branco já conspirava contra Goulart, chegara a hora de “colocar as tropas nas ruas”.

Estava aberto, portanto, o caminho para o Golpe Militar, que colocou o Brasil por 21 anos na fase mais difícil de nossa história política. Acabava aí a história do Cabo Anselmo marinheiro; começava a história nebulosa do militar resistente(?), guerrilheiro  treinado em Cuba (?), colaborador das forças  de repressão, foragido da Justiça, que trocou de nome e de feições, com uma cirurgia plástica que modificou totalmente seu rosto. E que durante anos conseguiu se esconder da polícia, da Imprensa, e de antigos companheiros que queriam fazer justiça com as próprias mãos, especialmente para vingar a morte dos companheiros  que Anselmo tão cretinamente  entregou à  repressão.

Foi nesse período de clandestinidade que, até hoje, não sei se tive o Cabo Anselmo como companheiro, por uns poucos dias, numa pensão onde morei por três anos, antes de me transferir para o Rio de Janeiro, em 1969. Ficava na Rua da Concórdia, um pouco antes da Rua de São João, e tinha como proprietários um simpático casal de São Bento do Una – que tratava os seus hóspedes como se fossem integrantes da família. O imóvel era uma casa residencial, com um amplo espaço no quintal, onde foram construídos quatro quartos independentes, cada um deles com dois beliches. Isso significa dizer que os hóspedes fixos (muitos dos clientes da pensão apenas faziam lá suas refeições) dividiam seus “aposentos” com mais três inquilinos, fossem ou não fossem conhecidos.

No meu caso, eram companheiros um irmão que, como eu, tinha vindo do interior para cursar a Faculdade e, ironia maior, um sargento do Exército, topógrafo, absolutamente apolítico e grande bebedor de cerveja nos fins de semana. Uma quarta cama estava desocupada. Os demais quartos,  também tinham vagas não ocupadas – o que não era comum, mas, quando surgiam,  sempre havia interessados, tanto pela localização, quanto pela boa qualidade de sua cozinha.

Os proprietários da pensão, quando  as vagas apareciam, costumavam colocar uma pequena placa colada na parede, avisando que “Temos Vaga”. Bom dizer também que faziam parte dessa “imensa família” além de estudantes, alguns profissionais liberais, bancários, alguns executivos de empresas, um deles diretor do Grupo Edson Queiroz, de Fortaleza, que já ampliava sua atuação para além do Ceará. Compunham um bom “mix” os clientes de nossa pensão.

Pois bem. Corria o ano de 1969,  eu já trabalhava na Sucursal da Revista Manchete em Pernambuco, quando, numa sexta-feira despretensiosa, encontrei, à noite, no bar do Teatro Popular do Nordeste, na Avenida Conde da Boa Vista, o jornalista Nilson Pereira Lima, repórter do Diario da Noite, “furão”, bem informado, extremamente competente e solidário. Sentamos numa mesa,  começamos a conversar amenidades. Depois da segunda cerveja, ele olhou  dos dois lados e, baixando a voz, disse:-“Eu soube que o Cabo Anselmo está escondido aqui no Recife… Fonte muito segura. O DOPS está atrás dele”…

Bom dizer que pouco se ligava para o Cabo Anselmo naquela época, muita gente sequer ouvira falar o seu nome, era apenas mais um que se colocava contra o regime, e que logo mais seria preso pelas forças legalistas. E lembrar também  que o garrote da censura  apertava forte o pescoço de  parte da imprensa, principalmente de jornais como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil e, um pouco menos, a Folha de São Paulo. A grande maioria dos jornais, revistas, rádios e televisões apoiava descaradamente o regime militar – era difícil ultrapassar a linha traçada pelos censores.

Em Pernambuco, um coronel da ativa tinha, inclusive, uma coluna diária num dos jornais locais, com o título de “Cartas ao Tio Juca”,  assinando com o pseudônimo de “Ibi”… Quase todos faziam tudo para ser simpáticos aos militares. E não iam gastar  tempo nem espaço para falar de um “cabo” procurado pela polícia, que nem “cabo” era.

Nesse mesmo fim de semana em que Nilson Pereira Lima me deu aquela informação, uma das vagas oferecidas na nossa pensão fora ocupada, desde a quinta-feira, por um inquilino que lá chegou após  ver o anúncio de “Temos Vaga”, aposto na parte externa do imóvel. Chegou com a cara e uma mala que, em depoimentos posteriores dos companheiros de morada, não parecia conter muitas coisas. Estatura mediana, mais alto do que  baixo, forte, musculoso, rosto aparentemente queimado pelo sol, disse ser representante comercial  que estava chegando para se instalar em Pernambuco.

Não se sabe se tinha documentos, ou, pelo menos, se os proprietários da pensão pediram alguma referência, pois estavam acostumados com sua  pequena burguesia, composta de estudantes, bancários, comerciários, militares de baixa batente, gente simples como eles, que no fim do mês, religiosamente,  pagavam os compromissos  devidos.

Pois  bem, ouvi a conversa de Nilson, não dei muito importância à informação, o Cabo Anselmo não era o tipo do personagem que interessava à revista para a qual eu trabalhava.

No sábado pela manhã, na mesa do café, não sei por qual razão, comentei com um companheiro da Pensão, funcionário do Banco do Estado de São Paulo e ex-dirigente do Sindicato de sua categoria, os boatos sobre a possível presença de Anselmo em Pernambuco. Numa mesa ao lado, só e silencioso, o novo companheiro de pensão também tomava cabisbaixo o seu café da manhã.

No domingo, ele havia sumido. Saiu na calada da noite, silenciosamente, levando sua mala e alguns pertences do companheiro de quarto, inclusive a carteira de cédulas com todos os documentos. Ninguém viu absolutamente nada. Quem seria aquele hóspede misterioso? Por que não se exigiu dele, quando chegou, documentos e referências? Não cabia, no caso, registrar qualquer queixa na Polícia, se não havia mais informações detalhadas para balizar a queixa. E para mim, ficou uma dúvida jamais esclarecida: seria o meu ex-companheiro de pensão o procurado Cabo Anselmo? Que, na época, imaginava eu, combatia o regime militar e, no nosso imaginário, era um defensor da ordem e da legalidade? Perfil que ele se encarregou de macular?

Não sei e jamais vou saber. O Cabo Anselmo é hoje apenas uma cruz solitária num cemitério do Interior de São Paulo, e creio que muito poucas pessoas, se houver, vão rezar no seu túmulo solitário.