Mural de Brennand – Museu do Homem do Nordeste.

 

É conhecida a passagem de “Em busca do tempo perdido” em que o Barão de Charlus, já na velhice, relembra os amigos mortos. Proust faz com que o personagem componha uma estranha litania, chamando a nossa atenção para uma insólita reverberação: “Era com dureza triunfal que repetia em tom uniforme, gaguejando um pouco, e com surdas ressonâncias sepulcrais: ‘Hannibal de Bréuté, morto! Antoine de Mouchy, morto! Charles Swann, morto! Sosthène de Doudeauville, morto!’. E, cada vez, a palavra ‘morto’ parecia cair sobre os defuntos como uma pá de terra mais pesada, lançada por um coveiro que os quisesse prender mais profundamente ao túmulo”. Mas a palavra “morto”, convenhamos, é um evidente escândalo para se associar a um amigo. 

Costuma-se falar que, entre povos ágrafos, quando morre um ancião, morre uma biblioteca. Pois bem, a morte de um amigo é uma espécie de biblioteca que morre: os diálogos e conselhos se foram, a confiança se foi, um espelho se foi, tudo o que foi “escrito” perece no fogo impiedoso da morte. O amigo era um conhecimento essencial e disponível. Na existência, que é sempre difícil e cheia de ardis, o amigo nos ajudou a viver. Era um outro canto do nosso canto; assim, em certo lugar de nós, já não haverá música, tampouco o mesmo silêncio que nos unia e completava. 

Montaigne, num momento de síntese e de luto, ao recordar e explicar sua amizade com Étienne de la Boétie, escreveu: “Porque era ele, porque era eu”. Eis, em duas frases, toda a ontologia da amizade. Eis o que, no limite e no interior de seu coração, cada amigo pode dizer de outro… E terá dito tudo. 

Em sua autobiografia, Woody Allen, ao comentar sobre celebridades que conheceu, sai-se com esta frase sobre o cineasta Michelangelo Antonioni: “Sem humor nenhum, mas brilhante”. Acontece. Não obstante as pessoas brilhantes geralmente serem dotadas de humor. O amigo que venho de perder era brilhante e bem-humorado. De vários amigos em comum, também pude ouvir: “Era leve”. (A hora da morte é a hora dos adjetivos implacáveis…) Concordo: ele era leve, mas de uma leveza, para lembrar uma observação de Italo Calvino, “[…] associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”. Era leve não só por seu bom humor, mas porque a leveza lhe era conatural. Tão conatural que extravasava para sua arte. Seus desenhos, quaisquer que fossem, respiravam essa leveza, trazendo a marca do que subitamente se torna pássaro e indispensável. Para falarmos à maneira de Da Vinci, não era sua mão que encontrava o traço arrojado, era o espírito, a “coisa mental”. 

A leveza sempre impediu meu amigo de ter uma pose, aliás como é tão comum na vida social. De resto, razões práticas para uma pose nunca lhe faltaram: ocupou cargos de relevo na Fundação Joaquim Nabuco (por anos, dirigiu o Museu do Homem do Nordeste com discrição e competência) e, mesmo quando não os ocupou, seu trabalho, sua “expertise” e sua palavra valiam ouro. Como ilustrador, sua arte vive em vários livros pernambucanos, dentre eles, inclusive, uma nova edição de “Casa-grande & senzala”. E também é dele o painel cerâmico que encontramos no monumento funerário de Gilberto Freyre, onde um detalhe por certo teria agradado bastante o grande estudioso do Brasil. Esse detalhe, a seu discreto e dionisíaco modo, é — que pasmem, se ainda existem, os pudicos — um casal fazendo amor… 

Nada de pose, nada de dar refresco à vaidade. Se, como escreveu Robert Musil, “Uma pessoa vaidosa causa a impressão de desempenhar menos do que poderia”, uma vez que se exalta a si mesma e nos provoca desconfiança, meu amigo, pelo contrário, sempre ficava sabiamente num lugar em que poderia “desempenhar mais”, sendo tão somente “sábio de sua própria sabedoria” para novamente mencionar o já citado Michel de Montaigne. 

Amava a literatura, e o mesmo senso estético que o norteava em sua arte plástica fazia com que se enriquecesse de uma compreensão literária poucas vezes encontrada. A “poíesis”, a invenção, era o seu gozo, e por certo nunca foi a discrição que tornou esse gozo menor, talvez o contrário é que seja verdade. Assim, entre saberes e sabores (até porque também tinha dotes culinários!), tomava da vida, com apurada sensualidade, uma dose generosa de prazer. Com essa dose, sabia se embriagar do instante, certo da contingência de que não temos mais que o próprio instante. Eis por que tenha sabido ser tão amigo, tão solícito, tão presente e, por vezes, em sua medida humana, tão esquecido de si mesmo. 

A cultura e a arte pernambucanas perderam uma grande figura; seus amigos, um grande amigo. “Viveu”, como diziam os antigos romanos para anunciar a morte de alguém. E aqui, finalmente, com gratidão, escrevo seu nome como se o abraçasse: Antonio Carlos Duarte Montenegro.