Jean Marc von der Weid, 27 de julho de 2022 

Povo nas ruas contra Bolsonaro.

 

Na verdade, não. Não estamos juntos, pelo menos não estamos articulados do ponto de vista da promoção de ações unificadas. Do ponto de vista político, a sucessão de declarações e manifestos, que se multiplicam desde o ato insano de Bolsonaro no seu palco de embaixadores na segunda passada, provocou uma unidade objetiva em defesa da democracia, do Estado de direito, das eleições, das urnas eletrônicas, da posse dos eleitos e do TSE. Mas cada setor da sociedade e da política se expressa em separado. 

O ato de Bolsonaro surpreendeu, não pelos absurdos que proferiu, nossos conhecidos desde há muito tempo. O que mudou foi a disposição de todos buscando reagir. Primeiro foram declarações individuais, a primeira do ministro do STF e do STE, Edson Fachin, seguidas pelas dos candidatos à presidência, Lula, Ciro, Tebet e Janones e do presidente do Senado. Logo surgiram declarações institucionais de entidades do Judiciário e do Ministério Público (menos o Aras e a Lindora). E apareceu o manifesto chamado de Carta aos Brasileiros e Brasileiras agregando os setores jurídicos, citados acima, e mais entidades de policiais federais e, pasmem, da ABIN! O general Heleno deve estar espumando até agora e sonhando com os seus subordinados pendurados em pau de arara. 

Se Bolsonaro tivesse falado o que falou no curralzinho do Alvorada não teria havido reação, pois ele faz isso dia sim, dia não. A escolha desastrada do público para proferir insanidades antidemocráticas foi fatal. Despertou reações internacionais fortes, em particular do governo e até das FFAA norte-americanas e da imprensa e governos de vários outros países. Mas, talvez ainda mais importante, acordou do sono profundo setores do que poderíamos chamar de direita republicana. À Carta aos Brasileiros se seguem agora novas declarações em nome de entidades empresariais. Isto é um passo mais importante do que a assinatura individual de banqueiros, juristas, economistas e industriais. Estamos esperando os documentos da FIESP e da FEBRABAN, que congregam o conjunto de bancos do país e o conjunto de indústrias do Estado mais industrializado do Brasil. E anunciam-se outros, da FIRJAN e da FIEMG. 

Pressionado pela gritaria da mídia convencional, o Planalto reagiu debilmente, procurando minimizar os eventos. Ciro Nogueira tuitou afirmando que tudo isso era apenas sinal do descontentamento dos bancos pela expansão do uso do PIX! Idiotice reproduzida em massa pelo gado nas redes sociais. 

O silêncio de Aras e de sua substituta no momento, Lindora Araújo, assim como o do presidente da Câmara, Artur Lira, o paladino de Arapiraca, foram retumbantes. Acuados pela opinião pública, eles acabaram fazendo declarações em favor do processo eleitoral, mesmo esquivando- se de se referir à origem dos problemas, ou seja, o ato insano de Bolsonaro. 

O isolamento do presidente se ampliou com a declaração do Ministro da Defesa em favor da democracia e do Estado de Direito, feita no quadro de uma reunião de ministros da Defesa dos países membros da OEA. A declaração não foi exatamente espontânea, pois foi provocada pela proposta americana de reafirmar os princípios da Carta fundadora da OEA e esta proposta esteve longe de ser apenas protocolar. Os gringos estão marcando o governo e as forças armadas brasileiras de perto. Para fechar este capítulo, o presidente do Superior Tribunal Militar, disse com todas as letras o velho adágio “cada macaco no seu galho”, indicando que as FFAA não devem se imiscuir com as eleições a não ser como apoiadores recrutados para ajudar e sob as ordens do STE. Não devemos comemorar muito, neste caso, porque generais desta corte não têm poder e ele mesmo está por se aposentar. Mas politicamente pegou malíssimo para aqueles que ameaçam o processo eleitoral. Também circulou informação de que três generais abordaram ministros do STF para mostrar descontentamento com os atos de Bolsonaro e do próprio Ministro da Defesa. Se for verdade trata-se da pá de cal no golpe, pelo menos em um golpe apoiado pelo alto comando. 

As iniciativas da sociedade civil, no seu componente do andar de cima, se desdobram em atos políticos presenciais, sendo que dois já estão marcados, o da Carta no Largo de São Francisco no dia 11 de agosto e o da FIRJAN na sede da entidade no dia primeiro de agosto. Todos os partidos do congresso foram convidados a participar e vários deles já confirmaram presença. 

Enquanto o centro e a direita republicanos estão em franca atividade, a esquerda parece agir em câmara lenta. Entidades da sociedade civil influenciadas pela esquerda se manifestaram, mas com muito menos repercussão. É claro que uma declaração da CUT, da UNE ou do MST não seria novidade e é normal que as manifestações do andar de cima chamem mais a atenção. A Campanha #Forabolsonaro, que conseguiu colocar, no seu auge, 700 mil pessoas em umas 400 cidades no país e no exterior, no ano passado, está por reunir sua plenária com mais de uma centena de organizações e frentes de organizações esta semana, para aprovar uma proposta da coordenação. Inicialmente a ideia era de fazer dois grandes atos nacionais, em 20 agosto e dia 10 de setembro. Aparentemente, foi acrescentada outra proposta, pegando carona no ato proposto pelos signatários da Carta, fazendo do dia 11 de agosto um Dia Nacional de Defesa da Democracia, das eleições etc., e pela paz na campanha. Não está claro se a articulação da Carta se dispõe a fazer outros atos em outros lugares, o que seria ótimo. Se isto acontecer fica a questão para a esquerda: junta-se aos manifestantes convocados pela Carta ou faz atos em separado? Tudo indica que a segunda opção vai ser preferida e talvez seja melhor assim. Imaginem se a militância de esquerda, com a sua coreografia toda em vermelho, com bandeiras com foice e martelo e consignas mais radicalizadas comparecer em massa nos atos da Carta? Como reagirão os manifestantes com outro perfil político e ideológico? 

Na minha memória apenas registro duas ocasiões em que este espectro amplo de manifestantes se juntou em atos comuns; na campanha pela anistia e liberdades democráticas no tempo da ditadura militar e na campanha pelas Diretas Já. No primeiro caso, o mero fato de que estávamos ainda sob um estado policial inibia a adoção pública de identidades mais à esquerda. No segundo, a iniciativa política estava nas mãos de entidades plurais e a força relativa da esquerda era bem menor do que hoje. Ou seja, simbolicamente, prevaleceu o branco da paz e o verde amarelo sobre o vermelho. E todos se juntaram em consignas comuns, sem maiores percalços, nas maiores manifestações da história da República. Hoje as posições estão muito mais acirradas e vimos militantes de partidos de centro como PSB e PDT serem hostilizados nas manifestações do #ForaBolsonaro. Imaginem como os militantes mais aguerridos ou mais sectários do PT receberiam a leitura da Carta se ela for feita, por exemplo, por um dos seus principais articuladores, o jurista Miguel Reale, autor do pedido de impeachment de Dilma. A meu ver a nossa esquerda não está pronta para movimentos em conjunto com outras forças do espectro político. É uma lástima porque endurece a percepção de intolerância nos outros setores, mas não há o que fazer. 

Outro fator que enfraquece a mobilização conjunta da esquerda, centro e direita republicana é a própria campanha eleitoral. Os partidos congressuais estão totalmente voltados para os acertos de alianças e montagem de palanques para seus candidatos e dificilmente vão jogar sua militância em iniciativas que não sejam afirmadoras de suas identidades. É mais fácil o Lula e a frente que o apoia organizarem grandes atos em defesa da democracia do que se juntarem a outras forças, com outras identidades, para isolarem o bolsonarismo. 

De toda forma, juntos (no sentido de ao mesmo tempo), mas separados, amplos setores da política e da sociedade civil estão se manifestando contra as intenções golpistas de Bolsonaro. É muito mais do que eu imaginava possível dez dias atrás. Ainda temos que esperar para ver qual o fôlego desta iniciativa da sociedade civil que atua fora da bolha da esquerda. Não são setores que tenham como práxis a mobilização de massas, mais afeitos às cartas, manifestos e colóquios. Entretanto, seria muito importante que assumissem esta iniciativa, para começar convocando atos no estilo do programado para o Largo de São Francisco para todas as cidades do Brasil, seja no dia 11 de agosto, seja em desdobramentos deste primeiro passo. 

E a ameaça de golpe? Pode se considerar afastada? Longe disso. Embora Bolsonaro e seus asseclas estejam fortemente isolados, o energúmeno calcula em outra lógica. Como tenho insistido há pelo menos dois anos, Bolsonaro aposta no caos para agir e dar o seu golpe, seja qual for o formato que ele adotar. Se o caos não ocorrer naturalmente ele vai provocá-lo. E a forma óbvia vai ser pela mobilização de seus milicianos armados para agredir os que a ele se opõem. E quem serão os alvos das agressões e provocações? Os acontecimentos do Rio de Janeiro, Uberaba e Foz do Iguaçu mostram o caminho escolhido. O bolsonarismo não vai botar bomba nem agredir os participantes do ato do Largo de São Francisco. As agressões serão dirigidas ao PT e outros partidos da coligação da campanha de Lula. Infelizmente, podemos esperar outras vítimas como o Marcelo Arruda. Bolsonaro conta com quase 700 mil fanáticos armados, muitos deles ex-militares das polícias e forças armadas. Espalhados por todo o país e organizados em associações e clubes de tiro, e acionados pelas redes sociais, eles têm a capacidade de atuar coordenadamente em todo o país. A esquerda não pretende se intimidar e suas alas mais aguerridas não deixarão de reagir à provocações, atentados e ataques a suas manifestações. Os enfrentamentos não deixarão de provocar a intervenção do segundo mais forte apoio do energúmeno, as polícias militares. Podemos esperar intervenções da PM, dissolvendo manifestações na porrada e até na bala. Um atentado contra a vida do Lula é outra possibilidade. A comoção nacional que atos desta natureza não deixarão de provocar será o pretexto para o pedido de medidas de exceção, como o Estado de Sítio, com o adiamento sine die das eleições. 

A hora da verdade para o Brasil vai ser a votação destas medidas no Congresso. O caos vai ser suficiente para levar os congressistas a votar este pedido? Lira vai tratorar a Câmara, como já fez mais de uma vez? As FFAA vão se pronunciar apoiando o pedido? As polícias militares vão se manifestar? Os eventos recentes mostram que esta hipótese é hoje menos provável, mas ela está longe de estar descartada. 

Vamos precisar de nervos de aço e cabeça fria até a posse de Lula. 

 

Jean Marc von der Weid Ex-presidente da UNE (1969/1971)
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983
Ex-membro do CONDRAF/MDA (2004/2016) Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta