A sociedade fraturada:
A partir de 2013, a percepção de todos os analistas sobre a sociedade brasileira começou a mudar. Nos habituamos, desde o fim da ditadura militar, a olhar para os brasileiros como um povo em claro avanço político e ideológico. Até então, nas pesquisas de opinião, os interrogados que se classificavam como sendo de direita ou centro direita eram uma minoria. E pequena minoria. Prevalecia a identidade com o centro esquerda e a esquerda e até a extrema esquerda tinha significância. O voto majoritário em Collor era minimizado como um ponto fora da curva e, por 20 anos, o eleitorado sufragou candidatos à presidência vistos como de centro esquerda e de esquerda. Pode-se discutir se esta classificação política tinha consistência do ponto de vista de uma análise mais criteriosa, mas a leitura do eleitorado apontava para uma oposição entre uma identidade social-democrata (PSDB) e outra esquerdista ou socialista (PT e aliados). A direita não tinha dúvidas em classificar todos como sendo comunistas, mas o eleitorado não se alinhava com esta leitura.
Não percebemos que a oposição entre estes dois blocos empurrava o primeiro no caminho da direita e os laivos social-democratas do PSDB estavam sendo abandonados em troca de um discurso neoliberal na economia e de concessões cada vez maiores na pauta dos costumes. Já a esquerda petista e seus aliados também foram escorregando em direção ao centro, abandonando o discurso mais avançado na economia e nos costumes por uma postura mais palatável eleitoralmente. O choque foi se concentrando entre a defesa da reforma liberal da economia por um lado, e a defesa dos direitos dos pobres, negros, mulheres, indígenas, LGBTQIA+, meio ambiente pelo outro.
O pano de fundo da consciência social aparecia nas pesquisas de opinião, quando se apresentavam perguntas sobre casamento gay, aborto, pena de morte, igualdade de gênero, educação sexual, entre outras. A maioria dos consultados se posicionava contra as pautas mais avançadas, mostrando um persistente conservadorismo. Mas, apesar das resistências, as pautas mudancistas nos costumes fizeram alguns progressos nestas décadas, enquanto os valores democráticos eram definidamente apoiados pela maioria.
A virada da opinião pública a partir de 2013 veio como um raio em céu limpo para muita gente. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, uma camada raivosamente antidemocrática, anticomunista e ultraconservadora nos costumes assumiu uma identidade pública e deu início à polarização que hoje marca a sociedade. Nas eleições de 2014, Dilma Roussef teve que enfrentar uma candidatura, a de Aécio Neves, que virava à direita, buscando este voto conservador emergente. Ganhou Dilma por muito pouco e teve que governar sob o signo da contestação do próprio processo eleitoral. Cresceu na opinião pública a rejeição pela política e a crença de que político “é tudo a mesma coisa”. É neste caldo de cultura que floresce a candidatura de Bolsonaro.
Os componentes que explicam este processo são debatidos pelos analistas. Uns dizem que tudo é consequência da campanha midiática massiva contra os governos da esquerda, em particular a exploração política dos escândalos de corrupção, chamados de mensalão e de petrolão. Não há dúvida que a aliança entre juízes e procuradores abusando das leis para fazer oposição política, solidamente apoiados pela grande mídia, tiveram um papel importante no isolamento de Dilma, mas temos que lembrar que Lula foi submetido a um processo semelhante em 2006 e foi reeleito com sobras, saindo do governo em 2011 com a popularidade em “níveis soviéticos”, mais de 80% de aprovação. Ou seja, o discurso anticorrupção não colou no eleitorado nesta primeira ofensiva. Por que colou na Dilma? A operação lava-jato tinha mais matéria para alimentar a mídia e, por outro lado, a gestão da economia, sobretudo no início do segundo governo, revelou-se problemática. Esta gestão foi ainda mais atacada por ter adotado o programa econômico do seu adversário no pleito, com uma série de medidas de austeridade, cujo impacto na população foi notável. A meu ver, foi a combinação do econômico com o ético que levou os índices de apoio à presidente para menos de 10% e favoreceram o movimento que levou ao golpe de 2016.
A partir do golpe, outro fator entrou na liça política: a intensa participação da direita nas redes sociais, assumindo uma hegemonia que ainda é vigente, embora relativamente enfraquecida. Bolsonaro foi assumindo um protagonismo cada vez maior nesta mídia alternativa e, pouco a pouco, criando uma malha de fidelidades e de militância com características de seita religiosa. Altamente profissionalizada na exploração dos facebooks, whatsapps, instagrams e outros, a direita compôs uma bolha poderosa de apoiadores que se interrelacionam de forma permanente, seguem as orientações e creem cegamente nas informações que nela circulam. Este fenômeno permitiu que fosse sendo cristalizada uma ideologia de ultradireita, simplista, homofóbica, racista, misógina, “antipolítica”, antidemocrática, anticientífica e antipobreza. Esta identidade, que jazia nos subterrâneos da mentalidade de boa parte da nacionalidade sem coragem de se assumir, veio à luz e se mostrou de forma agressiva e militante.
Este movimento foi sendo assumido e estimulado pelas igrejas pentecostais, sobretudo nas igrejas chamadas de “mercado”, mas não apenas. Sim, a IURD tem um partido para chamar de seu, o Republicano, e outras denominações elegeram seus bispos em várias legendas. A bancada da bíblia é hoje uma potência. Mas, não se pode acusar estas igrejas de ter gerado este movimento direitista. Durante o governo de Lula e parte do de Dilma esses pastores políticos fizeram acordos com a esquerda em vários momentos, mostrando um oportunismo bem característico. Mas foi só a maré mudar para eles adotarem o discurso extremista de direita e engrossarem a maré montante do bolsonarismo. Esta corrente evangélica ficou ainda mais empoderada quando os números da eleição de 2018 mostraram que Bolsonaro teve uma vantagem de 10 milhões de votos sobre Haddad entre estes eleitores. Esta foi exatamente a diferença total entre Bolsonaro e Haddad e os pastores se viram como os grandes eleitores do energúmeno.
Qual o tamanho do bolsonarismo nos dias de hoje? Não acho que o voto em Bolsonaro seja composto, na sua totalidade, por gente da “bolha” da ultradireita. Assim como Lula teve uma margem decisiva de votos que optaram por ele por oposição a Bolsonaro, o mesmo se deu na composição do voto deste último, com muita gente fechando o nariz para impedir a volta de Lula e do PT.
Apoiadores fanáticos podem ser identificados nas pesquisas de opinião entre aqueles que apoiam todas as propostas e posturas do “mito”. Este número ficou, durante a pandemia, por exemplo, entre 15 e 20% dos consultados nas pesquisas. Depois da polarização da campanha eleitoral (e com o trauma da pandemia ficando para trás) este apoio subiu para 25 a 30%. O discurso de ódio mantido na fervura permanente ao longo de quatro anos teve seus efeitos perversos, não só para consolidar uma opinião ultrarreacionária, mas para levar seus defensores a exprimi-la de forma violenta.
Mesmo tomando o número mais baixo destas estimativas, temos que constatar que a ultradireita tem uma base militante ativa nas redes e capaz de se mobilizar nas ruas em grande número, com um apoio da ordem de 25% do eleitorado.
Esta militância, quando se olha para seus participantes mais aguerridos, é capaz de atuar com uma dedicação que antes só se via na esquerda. Milhares de acampados na porta dos quartéis por quase dois meses, centenas de ativistas capazes de interromper mais de mil pontos em estradas federais e perto de três mil fanáticos capazes de atacar e destruir os palácios do executivo, do legislativo e do judiciário são uma boa demonstração do poder de fogo do bolsonarismo.
A atitude covarde e defensiva adotada por Bolsonaro desde sua derrota eleitoral, o fez perder prestígio entre os mais aguerridos dos seus apoiadores, mas nas bolhas da ultradireita o “mito” segue sendo a referência. A sucessão de escândalos, em particular o caso das joias das arábias, pode significar mais perda de apoio. No entanto, lembro da enorme quantidade de barbaridades perpetradas por Bolsonaro ao longo da sua vida e ao longo do seu governo e o quão limitado foi o efeito na sua popularidade. As bolhas da internet são tão poderosas para blindá-lo com narrativas inacreditáveis, mas engolidas pelos bolsonaristas como verdades divinas, que devo achar que o energúmeno é o próprio teflon, nada gruda nele.
Se Bolsonaro se tornar inelegível, em um dos seus inúmeros processos na justiça eleitoral e se ele for preso, por outros tantos processos na justiça comum, ele vai continuar a ser um “grande eleitor”, mas vai ser difícil achar quem o substitua no papel de “mito”. Isto vai ser um ponto positivo na sucessão de Lula.
A massa de manobra ativista e militante, agressiva e violenta, conta ainda com um perigoso componente: os mais de 700 mil supostos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores). Esta base que está armada até os dentes e com munição para uma longa guerra, ficou ausente das manifestações na porta dos quartéis e no badernaço de 8 de janeiro. Apesar de instados a participar por dramáticos chamados nas redes, a milícia armada de Bolsonaro não mostrou a cara. Isto não quer dizer que ela não exista ou que não queira se expor. Tudo vai depender do contexto político. Creio que este grupo tem um limitante importante que é a sua descentralização organizativa e a falta de um comando unificado. Fazer com que mesmo uma fração de não mais do que 1% desta base, ou seja, 7 mil milicianos, se mobilize para atacar alvos em todo o país de forma simultânea é complicado. Cada um sempre ficará com a pulga atrás da orelha, com medo de se expor com o seu pequeno grupo local, organizado em algum clube de tiro, e não ser acompanhado pelo resto da base em outros lugares. Mas ações pontuais são mais viáveis, sobretudo as do tipo atentado contra as torres de transmissão de energia ou outro alvo qualquer. Não podemos descartar este tipo de fustigamento do governo Lula no futuro.
A divisão política e ideológica da sociedade brasileira não foi amainada pelo tradicional período de trégua pós-eleitoral, os “cem dias de paz”. Não só a tensão foi ao paroxismo até o badernaço do 8 de janeiro, como as pesquisas mostram que oposição e apoio ao ex-presidente estão praticamente idênticos aos resultados da eleição, quase meio a meio. O que esperar dos próximos meses?
A direita bolsonarista e o “partido militar” estão na defensiva depois da operação repressiva aos participantes e responsáveis pelos ataques na praça dos Três Poderes. A ausência e tibieza do “mito” também estão deixando o bloco paralisado. “Vai voltar? Não vai voltar?”. A bolha está confusa e ainda tendo que defender o seu líder nos escândalos das arábias e outros mais. Mas isto não dura para sempre. A arena privilegiada do bolsonarismo ou, no caso de eclipse do “mito”, de alguma liderança emergente (os filhos? a mulher?), tende a ser o Congresso. As bancadas da bíblia e do boi, ambas bolsonaristas raiz, estão com uma série de pautas, umas de costumes e outras (anti)ambientais, nas suas agendas. Ainda estão à espera do momento adequado, e ocupadas com uma iniciativa de baixo fôlego, a CPI do badernaço. E travadas pela eterna negociação de cargos no governo, que pode limitar as alianças com outras forças da direita.
Com CPI ou com a disputa de várias pautas caras ao bolsonarismo, o que vamos assistir é um embate congressual acompanhado por uma batalha midiática e nas redes sociais, podendo evoluir para mobilizações de massa. A regressão na legislação sobre aborto, por exemplo, deve ser um tema de forte tensão dentro e fora do espaço legislativo. E outras se seguirão, sem descanso para o governo. O bolsonarismo está louco para provocar a esquerda e os movimentos identitários e disputar as ruas, no número ou na violência. A esquerda não tem, há tempos, o monopólio das ações de massas e agora vai ter que mostrar que está viva e disposta a dar suporte ao governo e a sua agenda.
A reforma tributária é um tema árido e, para que possa provocar mobilizações, terá que ser difundida pedagogicamente para o povo ou ele não se mobilizará para apoiar o governo. Mas tudo vai depender da proposta de Haddad. Uma reforma que ataque a concentração de riqueza, diminuindo os encargos para o povão e para a classe média e aumentando para a classe A pode ganhar uma bela mobilização sob o signo da justiça redistributiva. No entanto, o governo terá muito mais argumentos para sensibilizar o povo a manifestar seu apoio se justificar o projeto pela necessidade de recursos para programas muito concretos e que toquem as carências do dia a dia do povo.
A metade do eleitorado brasileiro não adotou esta ideologia execrável que vem se manifestando crua e brutalmente nos últimos anos de uma hora para outra. Já havia uma camada, mais ampla do que imaginávamos, de racistas, misóginos, homofóbicos, etc. Esta gente que nos horroriza já convivia conosco, mas enrustidos ou, pelo menos, menos assumidos e agressivos. Afinal de contas, o racismo estrutural não é uma figura de retórica, mas uma realidade herdada de séculos de escravidão e de marginalização dos libertos. O que há de novo é que todas estas atitudes passaram a ser adotadas com fé e orgulho por uma parcela grande da população e tudo que antes estava reprimido e escondido veio à luz, destampado o bueiro onde esta lama moral jazia. Foi uma erupção de comportamentos não só discriminatórios, mas eivados de ódio, estimulado pela militância bolsonarista nas redes sociais e pelo próprio comportamento do energúmeno. A violência assumiu a forma mais extrema destas atitudes e aumentaram em muito o risco de negros, mulheres, indígenas, LGBTQUIA+ no seu dia a dia, inclusive pela violência policial.
Desarmar a política do ódio e a ideologia da extrema direita vai ser algo muito difícil, mesmo se Lula conseguir deslanchar a economia e levar adiante seus programas sociais. O peso da ideologia retrógrada é muito grande e seguirá impulsionada pelas redes sociais e pelas igrejas pentecostais. Nas últimas eleições, ela foi capaz de arrastar mais de um terço do voto dos mais pobres. Se a economia andar para frente, melhorando emprego e renda e acompanhada de programas sociais consistentes os preconceitos entre os mais pobres, inclusive nas igrejas, podem ser quebrados, em parte. Mas a armadilha está justamente neste SE…
Temos aqui um analista político brilhante e lúcido. Mas tenho uma pequena ressalva.
Chamar de “golpe” o impeachment de Dilma, instrumento constitucional inquestionável (tanto que foi tentado infrutiferamente muitas vezes pelo PT) é agredir os fatos por motivação puramente política. E afirmar que procuradores e juízes usaram meios jurídicos para fazer política é – com perdão da expressão – uma leviandade. Nada foi provado nesse sentido, e as decisões foram referendadas em várias instâncias judiciais. Se houve irregularidade foi a de Lewandowski, “fatiando” a punição. E também a anulação dos processos contra Lula, por uma “tecnicalidade” só definida pelo STF quando Gilmar Mendes “virou a casaca” para proteger, não o PT mas seus “padrinhos” do PSDB, então também sob ameaça.
Elegemos Lula para evitar o desastre, o caos, a ditadura, o obscurantismo e tudo o mais. Mas acreditar na inocência dele é como acreditar em Papai Noel. Com todo o respeito ao articulista, cujo passado tem semelhança com o meu (também fui da UNE).