Meu amigo Luciano Oliveira, mestre e doutor em Sociologia, autor de vários trabalhos publicados por conceituadas editoras nacionais, acaba de lançar no Recife, em segunda edição, o livro “O Aquário e o Samurai – Uma Leitura de Michel Foucault”. Nele, faz uma profunda e meticulosa exegese dos textos de um dos “monstros sagrados” da literatura e da ciência social francesa, daqueles muito louvados pelo mundo acadêmico brasileiro, mas certamente pouco lidos e compreendidos.
O título não me parece feliz, pela diversidade dos conceitos, mas Luciano é presto em informar que não é dele, e sim de um dos amigos de Foucault, Paul Veyne. E vem da concepção “foucaultiana” de que os homens são comparáveis a peixinhos de um aquário, que só veem o mundo como o limitado espaço onde se encontram, enquanto o samurai seria aquele que, trasmudado em guerreiro, insurge-se contra tal prisão, e a denuncia e combate. O aquário é uma alegoria das criaturas humanas vivendo irremediavelmente sob o jugo de uma “sociedade disciplinar”, como meros “efeitos do poder”.
Aliás, antecipemos, a atitude de Foucault em relação à sociedade é bem sectária: não admite que tenha havido nenhum progresso nas relações humanas, no que se refere ao controle das ações antissociais. Para ele, pouco difere o esquartejamento de um condenado, no século XVII, da prisão de um delinquente em nossos dias. No primeiro caso, castiga-se o corpo do infeliz, no segundo, a alma do criminoso encarcerado. O Poder do Estado apenas se compraz em “Vigiar e Punir”, que é o título do seu livro mais importante. E ele vai mais longe, incluindo e equiparando, em tal processo de opressão aos divergentes, o hospício, a escola, a fábrica… que mais? O Poder, como um avantesma, condiciona tudo.
Mas voltemos à imagem do aquário e dos peixinhos, onde se pretende demonstrar a dominância do Poder sobre a Razão humana e suas conquistas, em um suposto livre arbítrio. Na verdade, a questão é bem antiga, e tem motivado outras alegorias: a caverna de Platão, a gaiola de canário de Machado de Assis… No mito da caverna, Platão imagina um lugar isolado do mundo exterior, de cuja existência seus ocupantes só teriam notícia através de sombras projetadas numa parede. No conto “Conversa de Canário”, o mestre Machado, dando voz ao passarinho, nos dá conta de sua visão do universo: os limites de sua gaiola. Em ambos os casos, como no do aquário, o exercício da Razão e da consciência é cerceado por fatores externos ao “caniço pensante”. E daí? Como ficamos?
Cabe lembrar que o cativeiro da Razão já foi brilhantemente analisado por Sérgio Paulo Rouanet, que é, ao lado de José Guilherme Merquior, um dos pensadores citados por Luciano, em seu trabalho. No livro “A Razão Cativa”, Rouanet expõe os fatores condicionantes da Razão: nossas compulsões individuais, as pressões do meio ambiente, as imposições do Sistema de Poder. Mas não temos opção: é Karl Popper quem nos ensina que a razão crítica é a única alternativa válida encontrada até hoje contra a violência. Desconstruí-la é abrir espaço para a perplexidade e a mistificação. Ou nos render ao velho argumento “ad autoritatem”, tão vezeiro entre os religiosos de todos os matizes.
Só uma concessão podemos fazer, nesse imbróglio: admitir que o conhecimento científico, em todos os seus campos, como grande conquista do exercício da Razão, é provisório e perfectível. Suas proposições poderão sempre ser reconsideradas, aperfeiçoadas ou relativizadas, quando “valores mais altos se alevantem”.
Parece acontecer com Foucault aquilo que Merquior, citado por Luciano, chama de “lítero-filosofia”, gênero bem francês, em que se alia “a brilhantes dotes literários uma teorização desbragadamente liberta de disciplina analítica”. Acrescente-se: e com um estranho descompromisso com o que é afirmado e proposto às vezes tão enfaticamente. Pois é o próprio Foucault quem declara, em relação ao seu livro mais importante, que ele foi apenas uma “cançoneta anti-repressiva”…
É surpreendente como o instável autor, além de pontificar em aulas assistidas por multidões no “Collège de France”, tenha também sido acolhido em nosso mundo acadêmico de maneira tão acrítica. Parece até que nossas academias têm um gosto pela novidade, pelo inusitado, ainda que o novidadeiro seja depois desmentido, em razão de novas experiências de vida, como veremos a seguir.
Foucault é comentado, louvado, justificado por vários pensadores, historiadores e críticos seus amigos, além do Paul Veyne, já citado: François Ewald, Ferry e Renaut, Michael Lowy, Gilles Deleuze, todos meticulosamente escrutados por Luciano, em seu caprichoso trabalho. Vou referir-me a apenas um deles, de quem tive conhecimento anterior, não muito lisonjeiro: Gilles Deleuze.
Mas primeiro vejamos o que dizem, um do outro, os dois personagens sob foco. No afã de desculpar Foucault de suas dubiedades, Deleuze observa: “As pessoas gostam de encontrar contradições num pensador, mais até do que compreendê-lo”. E o” incompreendido”, num arroubo de exaltação ao amigo, chega a falar em um “século Deleuziano”! Diante de tanta amizade, para não dizer cumplicidade, não podemos incluir este cidadão na categoria do notável grego Péricles, que teve seu nome ligado ao século V antes de Cristo. Mas não ficamos só nisso.
Ao lado de Félix Guattari, Jacques Lacan, Jean Baudrillard e outros, nosso herói é referido no livro de Alan Sokal e Jean Bricmont “Fashionable Nonsense – Postmodern Intellectuals Abuse of Science” (traduzido para o português como “Imposturas Intelectuais”). Nele os dois cientistas demonstram, de forma consistente, como essas figuras se valem de termos científicos inadequados, ou mesmo equivocados – inclusive da matemática – em apoio aos seus textos obscuros, iludindo o público leitor, composto essencialmente de profissionais do ramo das humanidades. Um caso lamentável de mistificação.
Melhor recorrermos a James Miller que, não sendo francês, e tendo perquirido a vida de Foucault na Califórnia, já na maturidade, explica como ele, convivendo intensamente com a comunidade “gay” americana, pôde então assumir plenamente a sua homossexualidade e superar suas amarguras, ceticismos e niilismos. Pôde afinal “reconciliar-se com a vida”, e superar seu fascínio pela morte como solução “heroica” para os marginalizados, seus rancores contra qualquer tipo de moral universal (que ele considerava “catastrófica”), seu ódio contra a “sociedade disciplinar”, o “gigantesco aprisionamento moral da psiquiatria”, o “humanismo penal”, enfim, todos os seus avantesmas.
Cabe lembrar que ele, em toda a sua vida pré-Califórnia, foi duramente reprimido pela simples condição de ser homossexual. Mas nos últimos anos, ao assumir-se plenamente, seu amigo Paul Veyne foi encontrá-lo no Collège de France “nada mais tendo de histérico”, tendo-se tornado, nos seus próprios termos, “uma bicha (pédé, em francês) sem problemas. E até com o velho Sócrates, cujo humanismo considerava “ingênuo”, ele se reconciliou. E morreu serenamente (de AIDS).
Resta-nos um comentário final sobre o dilema entre vida e obra de Foucault: embora descrente do Poder e das regras sociais, ele sempre lutou politicamente contra o arbítrio e as injustiças. Luciano fala em aporia mas, “datissima vênia”, não me parece a melhor expressão. Por aporia entendemos uma proposição que se contradiz, a si mesma, e o pré-socrático Zenão de Eleia foi seu grande mestre. Mas não uma vida que se assume a despeito das próprias convicções ou narrativas. Os personagens de Albert Camus são um bom exemplo disso. E o fato é ponto de louvor para nosso comentado.
E quanto à consistência lógica da tese de Foucault, de que todo pensamento humano é condicionado pelas estruturas de poder, eu fico com Merquior, ao referir-se o paradoxo que ela encerra: “O projeto de Foucault aparece atolado num gigantesco dilema epistemológico: se exprime a verdade, então todo saber é suspeito em sua pretensão de objetividade”. O que, obviamente, inclui o saber produzido pelo próprio Foucault, complementa Luciano.
E assim chego ao final desta resenha, que se pretende ensaio. Mas há muito, muito mais no livro de Luciano Oliveira, cuja leitura recomendo aos amigos de espírito independente, foucaultianos ou não.
Caro Clemente!
Obrigado pela bela, cuidadosa e afetuosa resenha/ensaio.
Apenas um reparo: Ferry e Renaut não são admiradores de Foucault. Ao contrário, sãos dois dos seus mais duros críticos. No livro que escreveram juntos, “La Pensée 68” (O Pensamento 68) descem a lenha sem dó nem piedade no “Nietzsche de Saint-German-des-Prés”, como o chamou o nosso Merquior, que os foucaultianos brasileiros sequer se dão ao trabalho de ler.
E uma ressalva: Foucault foi um autor que exerceu uma influência muito grande sobre mim e minha maneira de olhar o mundo. Apenas não o leio reverencialmente. Minha admiração não anula meu senso crítico. E, sim, acho desastroso que ele seja lido entre nós como se o Brasil fosse uma “sociedade disciplinar”, o que está muito longe de ser. O Brasil é uma sociedade violenta, isso sim, o que é o exato oposto de uma “sociedade disciplinar”.
Abração do amigo
Luciano
Valeu a ressalva e o esclarecimento, amigo Luciano.
Honrado e grato pelo ilustrativo retorno!