Operários – Tarsila do Amaral.

 

Cem anos da Semana de Arte Moderna. Dois cenários. Um país.

1922, um país de cultura e leitura afrancesadas. 2022, uma nação mesclada pela diversidade, pelas cores e pela afrodescendência.

1922, um país de perfil rural e pouco alfabetizado. 2022, uma nação urbano metropolitana, implantando a reforma do ensino médio, com maior carga horária e formação técnica.

1922, um país ocupado por oligarquia paulista-mineira, associando café e leite. 2022, uma nação acossada por extremismo de direita.

No ínterim, mudanças esperançosas. E continuidades. O que continua: desigualdade social, clientelismo político, corrupção e corporativismo produtivo.

De qualquer modo, surgiu um outro país. Mais brasileiro, mais forte, com avanços científicos e tecnológicos, mais conhecimento e universidades, amadurecimento institucional. Uma cultura com letra e música brasileiras. Um jeito próprio. Tropical. Ao modo de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro.

A ideia do modernismo nasceu na Europa, após a Primeira Guerra (1914-1918). Sua sede foi Paris. Com Gide, Apollinaire, Péguy, Kafka. Mas também Berlim. Com o expressionismo alemão e tinta holandesa. Van Gogh e Munch. Ainda Nova York. Nas obras seminais de Eliot, Hemingway e Virgínia Woolf. Sem esquecer, na estepe russa, Stravinsky e Maiakovski. E, na península gelada, os dublinenses de Joyce.

No Brasil, o pensamento moderno tem quatro fontes. Primeira, o barroco escultórico do Aleijadinho. Unindo graciosamente o sagrado e o profano. Segunda, a influente cultura afro-brasileira que desembocou no samba, em Pixinguinha, Paulinho da Vila e Cartola. E a sedimentação de religiosidade africana na umbanda, hoje, respeitada.

A terceira fonte do pensamento moderno brasileiro foi a imaginação criadora e analítica. Começando por Manuel Bandeira, na poesia; seguindo com Guimarães Rosa, no romance; com Celso Furtado, no ensaísmo social. Agregando regionalismos da caatinga, do cerrado e do minuano. Quarta, a arquitetura de Oscar Niemeyer. Redonda. Voluptuosa. Feminina.

Fica evidente que os modernistas brasileiros enfrentaram um desafio relevante: criar uma poesia, um romance, uma arte, nacionais. Autênticas. Na cor, sabor. E no conteúdo. Utilizando bandeiras de vanguardas europeias. Ou seja, os condimentos eram de fora. Mas ingredientes e culinária teriam que produzir feijoada. E assim foi.

No decorrer de um século, aprofundam-se dois valores. Do lado da oferta de produtos culturais, garantia de liberdade de expressão.  No cinema, Luiz Carlos Barreto e Glauber Rocha, cinema novo. Na literatura, o romance regionalista, Jorge Amado e Graciliano Ramos. No teatro, a vida como ela é, Nelson Rodrigues. Nas artes plásticas, Cândido Portinari e João Câmara.

E, do lado da demanda de serviços culturais, expansão da cultura popular. Por meio da incorporação do rap de protesto. E disseminação de espaços coletivos de cultura popular.

A Semana 

O modernismo não surgiu na Semana de Arte Moderna. Que se realizou a 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Em 1917, a pintora Anita Malfatti expôs seus trabalhos de feitio modernista.  Em 1919, Manuel Bandeira já publicara o livro de poemas, Carnaval. Onde se lê, Os Sapos. Segundo Mario de Andrade, o grande inspirador da Semana foi Paulo Prado. Que indicou Graça Aranha, autor de Canaã, para coordená-la. Di Cavalcanti ficou encarregado de desenhar o material de divulgação. A Mario e Oswald de Andrade coube a tarefa de elaborar a programação do evento.

A Semana não ficou isenta de críticas. Lima Barreto publicou em A Careta, em julho de 22:

“São Paulo tem a virtude de descobrir o mel do pão em ninho de coruja. De quando em quando, nos manda novidades velhas de quarenta anos. Agora, por intermédio do simpático amigo, Sérgio Buarque de Holanda, quer nos impingir como descoberta dele o tal de futurismo”.

O fato é que a Semana de 22 representou uma ruptura na cultura brasileira. Desafiando aspectos do passado. Inovando na linguagem da arte. Superou o naturalismo. Buscando nuances da vida real. Aproximou a linguagem escrita da língua falada nas ruas. Dispensando sotaque parnasiano (José Almeida Junior, in Mario de Andrade e a Semana de Arte Moderna, Faro Editorial, 2021).

Passados cem anos, a linguagem é mais fiel ao que diz o país. Absorvemos influências externas. E mastigamos a realidade brasileira. Cumprindo o mote autofágico dos primeiros modernistas. Construímos um patrimônio cultural genuinamente brasileiro.