HIena

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Recentemente, em Balneário Camboriú, o presidente argentino Javier Milei recebeu dos Bolsonaros, num evento da extrema direita, a Conferência da Ação Política Conservadora (Cpac), a medalha de “Imorrível, imbrochável e incomível”, uma comenda que, logo se vê, é triplamente “gloriosa”. Tanta “glória” requer uma análise mais detida, embora não muito profunda sob pena de rachar a honraria. Longe de nós o desdém que cega e torna opaco o brilho das medalhas alheias. A inveja não mata, mas maltrata, e nada como ter o peito ladrilhado de ofuscantes honrarias, sejam elas medalhinhas, medalhas ou medalhões.

Quem não sonha ser um medalhão? Possuir essa magia que precede e abençoa todas as ações e todos os cargos… Machado de Assis foi ao conto, ou melhor, ao ponto, em sua hoje célebre “Teoria do Medalhão”, no qual vemos um pai aconselhar um filho que atinge a maioridade a escolher o tão “útil” quanto “cabido” “ofício de medalhão”. Ora, um pai (como uma vez nos lembrou Bolsonaro) quer o melhor para um filho, e o que de melhor do que ser um medalhão? Para chegar a medalhão, realça Machado, nada de muita originalidade; marcar presença em lugares de grande visibilidade e movimento para “falar do boato do dia”, da “anedota da semana”, de um “contrabando”, de uma “calúnia”; dominar algumas expressões latinas e “figuras expressivas”, além de lugares-comuns para abrir ou fechar um discurso e brilhar numa tribuna. O pai, em sua conversa com o filho, ainda nos fala de muita “publicidade”, de agraciamentos para felicitar beneméritos e forasteiros, sendo explicitamente taxativo: “Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade”. Filosofia? “Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada”. Finalmente, nada também de ironia (“feição própria dos céticos e desabusados”), mas um bom uso da “chalaça”, ou seja, do dito zombeteiro!

Do medalhão machadiano, voltemos à medalha dos Bolsonaros, cuja inscrição oscila entre as esferas de Tânatos (“imorrível”, adjetivo que, por absurdo, dispensa comentários) e a de Eros, mas um Eros autoritariamente patriarcal, uma vez que atravessado por uma sexualidade, para dizer o mínimo, politicamente controversa. “Imbrochável” destaca bem o preconceito em face de uma idealização fantasiosa de um sexo masculino sempre potente, eternamente fálico, incapaz de quedas e falhas. O “imbrochável” nos remete também a uma masculinidade tóxica e simplória. Uma mitologia cara ao universo patricarcal, no qual a impotência é motivo de bullying e de uma desclassificação integral e sumária de todo o indivíduo: não há amor para um brocha. Brochar, nesse universo, é um pecado mortal, um atestado de que não se pode ser um verdadeiro “medalhão”.

Por sua vez, o “incomível”, de forte teor homofóbico e com o mesmo mau gosto do “imbrochável”, toca noutro tabu sexual. O mundo pode ser dividido entre “comíveis” e, claro, “não comíveis”, relembrando a gasta e simplista polaridade entre “ativos” e “passivos”, sendo a mulher, não por acaso, a passividade em pessoa. Uma passividade que bolsonaristas e reacionários não só valorizam como fazem de tudo para levar à cena política e aos relacionamentos sociais. A misoginia, dispensável dizer, também se aninha na lustrosa medalha bolsonarista.

Na contramão dos que se apressam em enterrar Freud e sua “obsessão sexual”, o sexo, como o demonstram a sarcástica medalha e a própria realidade, continua uma radicalidade existencial e, do ponto de vista da libido (da própria energia sexual e vital), uma fundação biopsicológica do ser humano. Não é a morte, como queria Fernando Pessoa na “Tabacaria”, que “[…] põe umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens”, mas o sexo. Não será por acaso que os abusos sexuais não escolhem apenas banheiros, motéis e capinzais, mas templos religiosos, assembleias legislativas, transportes públicos e até hospitais! Durante a Primeira Guerra Mundial, Marcel Proust, no último volume de “Em busca do tempo perdido”, nos fala como, em meio à escuridão das estações de metrô, as preliminares eróticas ficavam dispensadas… Agora, da mesma forma, mas noutra espécie de guerra, a neofascista, uma “liberação” sexual exibida e perversa é frequente, tal se fosse um efeito das rupturas legais e civilizatórias propostas pelos líderes políticos mais extremados.

A medalha das hostes bolsonaristas, com seu trio de adjetivos reativos, é um ícone fiel e já naturalizado da violência neofascista brasileira. Esse trio verbal é bem aquilo que Machado, no seu antológico conto, sintetizou: nada de ironia (esta, diz ironicamente o narrador, foi algo “[…] inventado por algum grego da decadência”), mas o uso da “chalaça”, da zombaria, o único tipo de humor que resta aos reptilianos entre medalhas e medalhões… Humor sem graça: a gargalhada das hienas.