Incêndio na California

Incêndio na California

Paradigma é uma palavra cara em algumas áreas do conhecimento, particularmente na filosofia e nas ciências sociais. Ganhou muito destaque há 60 anos, por ocasião da publicação do livro do físico e filósofo Thomas Kuhn – A estrutura das revoluções científicas. Paradigma é uma expressão de múltiplos sentidos, como era de se esperar. Comumente é usada como padrão, modelo ou conjunto de formas estruturais que dá especificidade a algo.

Segundo Pierre Charbonnier o paradigma do desenvolvimento na sociedade moderna, após a revolução industrial, foi marcado por dois eixos. O primeiro, é o da abundância. Desde o Iluminismo no século XVIII os humanos, no Ocidente, desenvolveram a ideia, presente em muitas culturas anteriores e suas publicações, particularmente a Bíblia, que os humanos deveriam dominar a natureza e dela extrair todos os bens que correspondessem a suas necessidades e desejos. A visão antropocênica, em que tudo existe e deve ser modificado em função dos desejos dos humanos, ganhou hegemonia no pensamento ocidental e depois mundial, acompanhando as duas expansões europeias nos séculos XV e XIX. Consolidou-se quando os povos assumiram o modelo econômico baseado na reprodução ampliada, e consagrou-se com a criação da sociedade de consumo no século XX.

O segundo eixo é o da liberdade. As sociedades anteriores à sociedade moderna tinham direitos desiguais, e alguns indivíduos eram despidos de qualquer direito (escravos). Eram sociedades hierarquizadas e sem mobilidade social, sendo a família ou o clã o locus do poder e sua transmissão, com algumas exceções. A desigualdade era natural. A sociedade moderna que se ergue na Europa Ocidental, inspirada em cosmovisões distintas, inclusive ameríndias, mas também resultante das modificações criadas com a expansão da economia de mercado, introduzem, aos poucos, transformações substantivas como a noção de igualdade, lei única para todos, poder como um lugar e mobilidade social. Aos poucos os regimes políticos ganharam novas formas, inicialmente como Repúblicas na Revolução Francesa e na Independência Americana (século XVIII), e, em seguida, graças às lutas operárias, como regimes democráticos (século XIX). Que se expande no século XX, graças ao protagonismo das classes médias. Após a Segunda Guerra Mundial, com a derrota do Nazismo e do Fascismo (1945), as independências africanas (1960), a queda das ditaduras no sul do continente europeu (anos 1970) e latino-americanas (anos 1980) expandiu-se pelo mundo. A expansão democrática alcança seu apogeu com o esfacelamento da URSS (anos 1990), e persiste até ao final da primeira década deste século. 

Assim, abundância e liberdade compõem os dois eixos do paradigma da evolução humana entre os séculos XVIII/XXI, segundo Pierre Charbonnier. Verdade que o capitalismo se expande bem mais do que a democracia, esta sempre incompleta e ameaçada, devido a suas frágeis raízes sociais. Verdade também que este paradigma, sob expressões distintas, está presente na literatura acadêmica e jornalista há quase um século. O valor do trabalho do pensador francês reside na forma sintética e elegante como expõe o paradigma da abundância e liberdade.

Esse paradigma funcionou relativamente bem, ampliando a qualidade de vida da maioria dos humanos, disseminando o acesso à serviços de saúde, à educação, à habitação, ao transporte e à alimentação. Claro que muitos foram excluídos desta festa, mas a maioria nela ingressou, embora de maneira desigual. A igualdade nunca foi obtida e a democracia foi sempre capenga. Mas a maioria dos humanos conheceram uma melhoria significativa em suas vidas e o espaço de luta para continuar esta melhoria foi conservado.

No entanto, o barco apresenta hoje água por todos os lados, ameaçando afundar. O sucesso do domínio da natureza cria seu inverso com a crise ecológica presente, e cada vez mais consciente, desde a década de 1970. Aumentam os eventos críticos climáticos, a perda da biodiversidade e o crescimento da poluição. Crise que parece ameaçar a presença da humanidade na terra. Por outro lado, o regime democrático parou de se expandir e apresenta sinais de esgotamento e reversão, com o crescimento dos partidos e lideranças autoritárias em todo mundo, particularmente no Norte. Os regimes democráticos dão lugar, gradativamente, a regimes autoritários.

A palavra crise ganhou o mundo. Há montanhas de livros e artigos em nossas bibliotecas que a utilizam, e estes não param de crescer. Tornou-se um lugar comum dizer que o mundo entrou em crise, para alguns, como Morin, civilizacional. Crise no caso significa a incapacidade de reprodução do paradigma da abundância e liberdade.  Assim, o esgotamento de suas proposições é cada vez mais patente, pois os humanos não param de acumular gases de efeito estufa na atmosfera e a democracia persiste em não responder às demandas das populações, aumentando a desconfiança dos eleitores nas instituições democráticas, que buscam alternativas as mais estranhas. 

Qual paradigma sucederá este que entrou em crise e mostra sinais crescentes de falecimento? Há várias hipóteses na literatura corrente, desde as catastrofistas ou distópicas, como as visões de apocalipse ambiental ou catástrofe econômica global, até as otimistas, como a do desenvolvimento sustentável ou sociedade global unida. 

Em se tratando de futuro – esta morada privilegiada da incerteza – não se pode adiantar com garantia nenhuma dessas ou outras hipóteses. Sabedor disso, e, portanto, dos limites de qualquer proposição de futuro, arrisco-me a desenhar uma hipótese em linhas bastante gerais para conhecimento e crítica dos leitores.

Ela se baseia em duas grandes suposições. A primeira, sustentada em vasta literatura e indicadores é que o eixo da abundância está se desfazendo. E isso por duas fortes razões: uma de ordem econômica e outra de ordem ecológica. 

A dinâmica econômica tem se arrefecido. A China não cresce mais com dois dígitos. O mundo cresceu menos de 3% entre 2022/2023. Em junho/24 o Banco Mundial estimou o crescimento global para 2,6% em 2024. Boa parte dos países europeus mal superaram 1%. O crescimento médio dos 20 países que compartilham o euro foi de 0,5% em 2023. E a previsão para estes países, este ano, é de 0,8%. O crescimento econômico no mundo hoje deve-se, sobretudo, aos países em desenvolvimento. Entre 2022/2023 a Mongólica cresceu 7,1%, a Índia 6,70% e o Irã 6,40. Para a África subsaariana a estimativa é de 3,5%, para o Leste Asiático e Pacífico de 4,8% e sul da Ásia é de 6,2%. No entanto, a expectativa do Banco Mundial é de desaceleração geral. 

Por sua vez, a crise ecológica está se agravando, as mudanças climáticas provocam eventos críticos mais frequentes e intensos: tempestades e inundações, secas e incêndios, temperaturas extremas, ciclones e tufões, com efeitos cada vez maiores economicamente e em vidas humanas. Acompanhados de crises sanitárias em forma de pandemias e retorno de doenças antigas e surgimento de novas. Esses eventos se tornarão, em meados deste século, senão antes, em verdadeiros desastres e catástrofes, que obrigarão aos humanos repensar e mudar sua forma de produção e consumo, enfim, seus estilos de vida. As restrições às formas de produção degradantes serão crescentes, assim como, às de consumo ostensivo. Os desastres naturais e as pressões sociais forçarão mudanças no sentido de transformar o eixo da abundância depredadora em um regime de apropriação comedida, beirando a austeridade.

Por outro lado, as ameaças de guerra, pandemia, violência urbana, terrorismo, invasão da privacidade e crime organizado tornarão a segurança um valor maior. As pessoas buscarão cada vez mais segurança, necessitarão de medidas de força, em particular provenientes do Estado, para que suas vidas não sejam ameaçadas, para terem sua sobrevivência assegurada. E, com isso, um movimento de redução dos defensores da democracia ganhará forma, alimentado, também, pela necessidade de adoção de medidas pouco populares para enfrentar a exacerbação da crise ecológica. 

Se essas suposições forem corretas o paradigma da abundância e liberdade dará lugar a um paradigma da austeridade e segurança, para que o maior número possível de pessoas possa ter o mínimo para viver, sem terem suas vidas ameaçadas. Entre a sobrevivência e a liberdade, o comum das pessoas prefere a primeira.

Finalizando, devo admitir que essa é uma hipótese otimista. Mas, que tem alguma sustentação lógica.